Onde a escravidão persiste

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Lei Áurea chega aos 130 anos, mas existe pouco a celebrar no último país das Américas a abandonar a prática

 

A Lei Áurea, que promoveu a abolição da escravidão no Brasil, chega aos 130 anos neste domingo (13/05). Mas há pouco a comemorar no último país das Américas a abandonar a prática. Além de continuar a verificar uma enorme desigualdade entre negros e brancos, recentemente o Brasil, que se notabilizou como exemplo do combate às formas modernas de escravidão, viu seu governo tentar retroceder uma luta civilizatória de mais de 20 anos.

A existência da escravidão moderna no Brasil foi reconhecida formalmente apenas em 1995, na gestão de Fernando Henrique Cardoso (PSDB), quando foi formado o primeiro Grupo Executivo de Repressão ao Trabalho Forçado. Nos governos de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), medidas anteriores foram mantidas e aprimoradas, e novas iniciativas foram criadas, a exemplo da lista-suja do trabalho escravo. Inaugurada em 2003, ela expõe ao público as empresas responsáveis pela escravidão moderna e ainda as impede de obter empréstimos de bancos públicos.

Neste período, cerca de 50 mil trabalhadores foram resgatados de condições análogas à escravidão. Em geral, as vítimas têm um perfil de vulnerabilidade: são homens (95%) jovens, de baixa escolaridade (33% são analfabetos, 39% só estudaram até o quinto ano) e moradores de bolsões de pobreza, principalmente do Nordeste e do Norte, mas também do norte de Minas Gerais, por exemplo, que migram para grandes centros urbanos ou fronteiras agrícolas em busca de emprego.

Mais da metade dos casos (52%) foram detectados na Amazônia, região de difícil acesso e de fiscalização custosa, onde muitos crimes se entrelaçam. Mas há resgates em todo o país. Setores do agronegócio, em especial a pecuária, se notabilizaram por concentrar a maior parte dos casos, mas atividades urbanas, como a construção civil e a indústria têxtil, também são marcadas por esse tipo de abuso.

Os flagrantes só foram possíveis graças a uma atuação conjunta entre Estado, ONGs e o Ministério Público do Trabalho, que conseguiram fazer do país uma referência no combate ao trabalho escravo. Recentemente, no entanto, a imagem do Brasil foi abalada.

“Estávamos em uma curva ascendente de controle do problema, tanto pela interpretação correta do que constitui trabalho escravo quanto pela construção, nos últimos 23 anos, de um arcabouço de políticas públicas bastante avançado que baseia o trabalho de instituições e da sociedade civil”, afirma o frade dominicano-francês Xavier Plassat, da Comissão Pastoral da Terra (CPT), uma das instituições líderes contra o trabalho escravo. “Mas nos últimos dois ou três anos estamos diante de uma tentativa acentuada de desconstruir tudo isso.”

As preocupações de Plassat têm como foco duas ações do governo Michel Temer (MDB). Ao assumir a Presidência, em agosto de 2016, Temer estabeleceu como prioridade uma reforma trabalhista que tinha como base a legalização da terceirização em todas as atividades de uma empresa. Aprovada em agosto de 2017, a reforma causou preocupação nas organizações que lutam contra a escravidão moderna, pois, conforme levantamento da ONG Repórter Brasil, dedicada a combater a prática, 90% dos trabalhadores resgatados de situações análogas à escravidão são terceirizados.

Dois meses depois, em outubro de 2017, o governo Temer foi atrás de dois dos principais pilares do combate à escravidão moderna – a definição do que é trabalho escravo e a lista-suja dos empregadores. Em uma portaria assinada pelo então ministro do Trabalho, Ronaldo Nogueira, o governo determinava que o trabalho análogo à escravidão só seria caracterizado se houvesse flagrante de privação de liberdade, e não uma de quatro condições previstas na definição anterior: jornada exaustiva, servidão por dívida, trabalho forçado e condições degradantes no ambiente laboral.

No que diz respeito à lista-suja, o documento atrelava a divulgação dos nomes das empresas flagradas a uma decisão expressa do ministro do Trabalho, esvaziando a área técnica da pasta, antes responsável pela lista. A portaria causou choque dentro e fora do Brasil e acabou revertida por decisões judiciais.

Além do conteúdo da portaria, chamou a atenção o momento de sua publicação – uma semana antes de a Câmara dos Deputados votar a denúncia contra Temer por organização criminosa e obstrução de justiça. Havia poucas dúvidas de que a medida era uma entre várias tentativas de obter apoio de deputados para salvar o mandato presidencial.

“Houve uma clara articulação dos setores mais atrasados do país, em aliança com interesses espúrios, para manter no poder um grupo sem representatividade política”, diz o deputado estadual por São Paulo Carlos Bezerra (PSDB), autor de uma lei que bane do Estado, por dez anos, empresas condenadas por utilizarem trabalho escravo. No dia da votação, a bancada ruralista, sozinha, deu 55% dos votos responsáveis por salvar Temer.

Parte dos representantes da bancada ruralista e das indústrias de construção e têxteis estava na base do governo Dilma Rousseff (PT), mas passaram a ter uma atuação mais arrojada quando ela foi derrubada. “Temer entregou como num prato as demandas desses setores”, afirma Plassat.

O papel do ajuste fiscal

Além da força política de atores econômicos importantes, os contingenciamentos de orçamento em meio à crise fiscal são um fator a prejudicar o combate ao trabalho escravo. Tanto no fim do governo Dilma quanto no começo da gestão de Temer, houve um retrocesso neste ponto.

De acordo com números do Ministério do Trabalho compilados pela Pastoral da Terra, a quantidade de operações contra o trabalho escravo, de estabelecimentos inspecionados e de trabalhadores resgatados caiu de forma intensa entre 2013 e 2016. Os resgates, por exemplo, foram de 2.808 para apenas 751 no período. Em 2017, o represamento de recursos foi denunciado por diversas entidades, e os números totais tiveram uma leve alta, mas que ainda os deixam abaixo dos patamares de 2013 e 2014.

A falta de recursos para o enfrentamento do trabalho escravo é particularmente prejudicial em um momento no qual os responsáveis pelo crime, que por natureza é “invisível”, têm “aperfeiçoado” suas técnicas, destaca Plassat.

Segundo ele, há notícias de contratos cada vez mais curtos feitos com os trabalhadores terceirizados, que raramente conhecem o empregador final e, assim, têm ainda mais dificuldade para denunciar os abusos. “Além disso, as redes de intermediários, os chamados gatos, que faziam convocações em pequenas cidades para as empreitas, têm sido substituídas por outras formas de aliciamento, como o recrutamento direto feito por amigos ou parentes”, diz. É outra forma de dificultar as denúncias.

Ainda segundo o religioso, o Ministério do Trabalho tem um déficit de 30% no número de auditores ideal, outra dificuldade estrutural que perpassa os governos e tem conexão com a crise fiscal.

Um problema também estrutural, mas de fundo histórico, está na raiz da existência do trabalho escravo no Brasil, diz Plassat. É a discriminação contra a população afrodescendente legada por uma abolição que não deu acesso a direitos básicos aos escravizados. “Assim, o trabalho escravo ao qual muitos se submetem é uma modalidade necessária para a sobrevivência de uma categoria importante da população brasileira que tem poucas alternativas”, afirma.

Bezerra concorda. “A escravidão tem um enraizamento profundo na nossa cultura, e isso se reflete no nosso jeito de fazer negócio, de produzir, de sermos sociedade, no racismo estrutural das nossas instituições, diz o deputado. “A escravidão no Brasil foi abolida, mas de fato ela não acabou, ela se modernizou, então precisa ser combatida por mecanismos cada vez mais atuais, seja na nossa forma de legislar, na fiscalização na prevenção e também na nossa forma de consumir”.

//Fonte: Carta Capital