Domínio da água “mineral” sobre a “torneiral” põe em risco a sobrevivência das fontes e demanda produção de copos, garrafas e garrafões, que podem causar doenças como o câncer
A propaganda é sempre a mesma. Tenta convencer a sociedade de que o poder público não tem condições de fazer os investimentos necessários para melhorar os serviços prestados à população e que a alternativa que resta é transferir a gestão para empresas particulares.
O problema é que esses acordos são firmados por meio de contratos de longa duração, com vigência média de 30 anos, sem fiscalização pelo controle social e ainda impõem cláusulas que livram o parceiro empresarial de eventuais prejuízos. Direito humano fundamental declarado pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 2010, a água que deveria estar acessível a toda a população, e com qualidade, é a bola da vez. A privatização da água está nas negociações entre governantes e megaempresários que pretendem colocá-la à disposição dos que podem pagar.
No último dia 24 de janeiro, em Davos, na Suíça, Michel Temer jantou com o presidente da Nestlé, o belga Paul Bulcke. A gigante mundial do setor de alimentos e bebidas, que pretende dominar o setor da água por meio do controle das fontes, do engarrafamento e da venda de água mineral, tem grande interesse no Brasil, onde já mantém alguns contratos.
Em São Lourenço, sul de Minas Gerais, controla fontes na estância hidromineral de São Lourenço. Segundo ativistas locais, já secou uma das três sob concessão por retirar 1 milhão de litros por dia. A agressão ambiental inclui o afundamento do solo no parque das águas e está sendo investigada pelo Ministério Público.
Diante do estrago em apenas uma das cidades, a perspectiva é desastrosa com a assinatura de contratos de concessão do governo brasileiro com a Nestlé, a Coca-Cola e outras multinacionais. Não é à toa que o Brasil vai sediar o 8º Fórum Mundial da Água, de 18 a 23 de março, em Brasília, com a presença de mandachuvas dessas e outras companhias.
De acordo com o Serviço Geológico do Brasil, nome fantasia da Companhia de Pesquisa de Recursos Minerais (CPRM), 89% da água envasada no Brasil é mineral, sendo o restante classificado como potável de mesa.
Em todo o mundo, grupos empresariais como Nestlé, Danone, Coca-Cola e Pepsico controlam juntas mais de 50% do mercado de água. No Brasil, porém, participam com apenas 4% em um mercado pulverizado, com inúmeras micro, pequenas e médias empresas nacionais.
Fim da água “torneiral”
Como a água privatizada é distribuída por meio da venda de copos, garrafas, garrafinhas e garrafões – a um preço proporcional até maior que o da gasolina, em um país rico em rios – com o fim da “água torneiral”, sobretudo nos restaurantes, a tendência é de agravamento de danos ambientais com o aumento da produção desses recipientes.
Segundo a Associação Brasileira da Indústria de Águas Minerais (Abinam), há um aumento anual de 20% no consumo, que em 2014 foi de aproximadamente 14 bilhões de litros.
Além da extração industrial da água, como a que secou a fonte em São Lourenço, a privatização é péssima para a natureza porque, no Brasil, apenas metade das embalagens são recicladas. A Associação Brasileira da Indústria PET (Abipet) informa que em 2015, apenas 51% das 274 mil toneladas de pet foram recicladas.
Os outros 49% estão espalhados pelo meio ambiente, ajudando a poluir ruas, praças, praias, rios e oceanos. Nesse total estão garrafas de refrigerantes e de outras bebidas, a maioria produzida por essas mesmas multinacionais que travam a guerra da água.
Com o cronograma da implementação da Política Nacional de Resíduos Sólidos em compasso de espera, todo esse lixo deve aumentar com o incremento da indústria da água mineral via privatização. De acordo com a norma regulamentadora 14.222, da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), vasilhames para água devem ser produzidos com resinas plásticas virgens.
Saúde humana
Se o meio ambiente vai sofrer os impactos trazidos com a privatização, com a saúde humana não será diferente. A produção de plásticos para o envase de águas tem entre as matérias primas substâncias como os ftalatos, o bisfenol A e os alquilfenóis.
O uso crescente dessas substâncias na indústria está associado ao aumento dos casos de câncer, sobretudo de mama e do aparelho reprodutor de ambos os sexos, de malformações congênitas e infertilidade. Estima-se que adoecem e morrem os que trabalham nessa indústria e os que utilizam esses produtos.
Engenheira química e professora titular do campus Curitibanos da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Sonia Corina Hess revisou estudos científicos sobre essas substâncias e os males associados a elas. Clique aqui para ler o artigo na íntegra.
Ela afirma, no entanto, que o risco de contaminação da água por essas substâncias presentes nas embalagens é pequeno. “A água é uma substância (polar) que tem pouca afinidade química por estas substâncias (apolares). Isto dificulta o transporte destes materiais do plástico, para a água. Essa contaminação depende de altas temperaturas, por tempo prolongado, como exposição ao sol”, diz.
“Em geral, a temperatura que a água alcança dentro da garrafa não é muito alta, o que levaria a reações fisico-químicas que levariam a tal contaminação, como acontece com embalagens de alimentos quentes e gordurosos, como frango assado, doces de confeitarias, chocolates, sopas”.
Seja como for, deveria prevalecer o princípio da precaução, com ações antecipatórias para proteger a saúde das pessoas e dos ecossistemas. E não os interesses de grupos empresariais.
Saiba mais:
Assista ao video Agressão ao Homem, da BBC sobre os efeitos do bisfenol A, ftalatos e alquilfenois na saúde pública.