Empregado “hipersuficiente”: mais uma aberração da Reforma Trabalhista

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Contemporâneo ao surgimento da sociedade industrial e do trabalho assalariado, o Direito do Trabalho aparece no início do século XIX como um limitador da exploração da força de trabalho humana.

Isto porque o trabalhador é e sempre foi a parte vulnerável da relação capital x trabalho, eis que dependente economicamente do empregador e impossibilitado de com este tratar em condição de igualdade.

Não à toa, o alicerce teórico que norteia esse ramo do Direito é composto por preceitos que visam equilibrar a relação de emprego e, por decorrência lógica, protegem o trabalhador. Sem razão, muito se critica o viés protetivo da seara trabalhista. Ora, não seria possível estabelecer paridade entre empregado e empregador sem uma base protetiva.

Pois bem. Ignorando um dos princípios basilares do Direito do Trabalho, a Lei 13.467/17 trouxe para o âmbito jurídico trabalhista uma inovação: a figura do empregado “hipersuficiente”, que corresponde ao trabalhador que possui curso de nível superior e recebe como remuneração valor superior a duas vezes o teto de benefícios do INSS (o que equivale, hoje, a aproximadamente R$11.063,00).

Pela nova legislação trabalhista, as cláusulas do contrato desse empregado valerão como norma coletiva, podendo, ainda, se sobrepor à lei, conforme artigos 444[1] e 611-A[2] da CLT 2017. Não obstante, nos termos do artigo 507-A[3], os trabalhadores “hipersuficientes”, desde 11 de novembro passado, podem levar a solução de eventuais conflitos com seus empregadores a uma Câmara Arbitral, desde que pactuada cláusula compromissória. Note-se que, para esta segunda possibilidade, a lei sequer fala sobre a necessidade de diploma de nível superior, bastando, portanto, o requisito da remuneração.

Dados da realidade brasileira evidenciam que esse grupo de empregados supostamente “hipersuficiente” corresponde a um percentual muito pequeno da população brasileira. Em 2015, o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) apurou que o salário médio do brasileiro empregado de uma empresa, pública ou privada, era de R$2.480,00[4]. No mesmo ano, apenas 14% dos adultos entre 24 e 64 anos haviam concluído o ensino superior no Brasil, segundo levantamento da OCDE[5] (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico).

Inobstante ser o empregado que preenche esses dois requisitos (salário e escolaridade) pertencente a uma minoria que contrasta com a situação da grande massa de trabalhadores e trabalhadoras brasileiros, essa condição, definitivamente, não lhe torna “hipersuficiente”, e tampouco capaz de negociar o seu contrato de trabalho com o empregador.

Em primeiro lugar, em virtude da subordinação devida pelo empregado, que é pressuposto da relação de emprego, conforme artigo 3º da CLT, e impede que se encontrem as partes em pé de igualdade. O empregado que aufere salário superior a R$11.063,00 e possui nível superior completo não deixa de ser economicamente dependente de seu empregador e de temer a dispensa, como qualquer outro trabalhador. Um salário e uma escolaridade mais elevados não lhe retiram a hipossuficiência econômica.

Evidente que se trata de uma “hipersuficiência” aparente, criada pela Nova CLT com o intuito único de conceder ao capital ainda mais autonomia para estabelecer pactos laborais cada vez mais favoráveis aos seus interesses.

Os contratos de trabalho são, verdadeiramente, contratos de adesão, com cláusulas 100% fechadas e elaboradas de acordo com a política da empresa e, consequentemente, com os interesses do empresário. E isso não se altera quando o contratado é graduado e receberá remuneração superior a duas vezes o teto dos benefícios do INSS.

Quanto à possibilidade de levar eventuais conflitos ao crivo da arbitragem, a hipótese em nada mais consiste do que mais um suposto “acordo” entre empregado e empregador, pressupondo que aquele tem total conhecimento jurídico para entender quem será competente para analisar possível insurgência contra o patrão.

Nota-se, neste ponto, mais uma demonstração clara de que o legislador pretende restringir o direito constitucional de acesso à justiça[6] aos trabalhadores; não bastassem as novas regras quanto à sucumbência, aplicáveis a todos os Reclamantes, a Reforma Trabalhista ainda pretende garantir a exclusão de uma parcela dos trabalhadores do Judiciário trabalhista, criando a ficção jurídica de que tem condições de deliberar com seu empregador a submissão de suas controvérsias à arbitragem.

TUDO ISSO, CLARAMENTE, COMO PARTE DE UM PROJETO MAIOR, DE ACABAR COM A JUSTIÇA DO TRABALHO.

Não é razoável entregar aos detentores do capital um grupo de trabalhadores que nem de longe detém condição similar para que possa, de fato, negociar cláusulas contratuais que lhe garantam uma troca justa pela venda de sua força de trabalho.

Como, por sorte, ainda não foram revogados a Constituição Federal, o bom senso e a lógica e a epistemologia jurídicas, aguardemos, esperançosos, que as decisões que hão de vir não condenem o pretenso empregado “hipersuficiente” à própria sorte.

Fonte: Justificando