“Os operadores tenham plena consciência de que fazem análises baseadas na discriminação racial”, aponta a pesquisa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
O estudo identifica a discriminação racial dentro do sistema que deveria servir para desafogar as prisões brasileiras. Nove em cada dez detentos vivem em unidades superlotadas, de acordo com o Depen (Departamento Penitenciário Nacional).
NA AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA, A FILTRAGEM RACIAL NÃO É REVERTIDA OU ANULADA. ISSO NÃO SIGNIFICA DIZER QUE OS OPERADORES TENHAM PLENA CONSCIÊNCIA DE QUE FAZEM ANÁLISES BASEADAS NA DISCRIMINAÇÃO RACIAL; TRATA-SE DE UM DADO OBJETIVO QUE MATERIALIZA A SITUAÇÃO MAIS DURA QUE OS NEGROS ENFRENTAM PERANTE A JUSTIÇA CRIMINAL, ENQUANTO A SITUAÇÃO PARA OS BRANCOS É MAIS FAVORÁVEL, MESMO QUE METADE DOS BRANCOS TENHA O MESMO DESTINO CARCERÁRIO QUE 65% DOS NEGROS.
O estudo foi contratado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e analisou 955 audiências de custódia, em seis capitais: Brasília (DF), Porto Alegre (RS), João Pessoa (PB), Palmas (TO), Florianópolis (SC) e São Paulo (SP).
Tráfico de drogas x violência contra mulher
A incidência de manutenção da prisão por tráfico (57,2%) é mais frequente que nos casos de violência contra mulher, em que 39,8% dos presos em flagrante permanecem encarcerados após a audiência.
Dos crimes violentos analisados, 65,1% tiveram a conversão da prisão em flagrante em prisão preventiva e 40% dos crimes cometidos sem violênciareceberam o mesmo tratamento. “Pode-se admitir que há uso excessivo da prisão provisória para delitos sem violência contra a pessoa”, diz o estudo.
Tiveram a prisão mantida 65,4% dos custodiados que tinham antecedentes criminais, enquanto o mesmo aconteceu com 37,3% dos que não tinham antecedentes.
O roubo é o delito que motiva o maior número de detenções em flagrante (22,1%). Tráfico vem como segundo lugar (16,9%), seguido de furto (14%) e receptação (11%). O último crime significa “adquirir, receber, transportar, conduzir ou ocultar, em proveito próprio ou alheio, coisa que sabe ser produto de crime, ou influir para que terceiro, de boa-fé, a adquira, receba ou oculte”.
Homicídios somaram 2,9% das audiências observadas. Violência doméstica aparece com incidência de 7,8% e outras lesões corporais com 1,8%.
O estudo critica o alto número de detenções em flagrante em que o crime não envolvia violência.
SE NÃO MAIS DO QUE 34,8% DAS PRISÕES EM FLAGRANTE OBSERVADAS REFEREM-SE A DELITOS VIOLENTOS, TORNA-SE EVIDENTE QUE A LIBERDADE SE TORNOU EXCEÇÃO NA PRÁTICA POLICIAL E QUE A REGRA TEM SIDO A PRISÃO PARA CRIMES PATRIMONIAIS (COMETIDOS OU NÃO COM VIOLÊNCIA) E DE DROGAS (QUE SOMADOS CORRESPONDEM A 64,1% DOS DELITOS IDENTIFICADOS NAS AUDIÊNCIAS).
Perfil dos encarcerados
Das pessoas conduzidas à audiência de custódia, 51% tem até 25 anos e a idade de maior incidência é 18 anos. A concentração de jovens é ainda maior entre as pessoas negras, de acordo com o estudo.
Dos casos analisados, 90% eram homens e 9% mulheres. Cinco outros pessoas eram trans.
Sobre o uso de drogas, 35% dos custodiados responderam que usavam algum tipo de droga. A maconha foi citada por quase metade e o crack por um terço.
Violações de direitos humanos
Nas audiências de custódia acompanhadas, 81% das pessoas estavam algemadas, o que contraria a Resolução n. 213/2015 do CNJ. Já em 86,2% dos casos foi observada a presença desses agentes.
“Nota-se forte aparato de segurança sobre os presos no momento das audiências, no qual as algemas e a presença dos agentes se combinam, mesmo em situações de baixa periculosidade”, diz o levantamento.
Quanto às obrigações do juiz, em 26% dos encontros não foi informada a finalidade da audiência e para 49,9% não foi explicado o direito de permanecer em silêncio. Para 49,7% dos presos também não foi explicado o crime que motivou a prisão.
“Vale destacar que existe dificuldade, para a maior parte das pessoas presas, de compreensão da linguagem usualmente acionada pelos operadores do direito. Não foram poucas as vezes em que os pesquisadores notaram a falta de entendimento dos presos em relação ao que foi discutido na audiência, incluindo seu resultado”, alerta o FBSP.
Quanto à violações no momento da prisão, 21,6% declararam ter sofrido algum tipo de violência e/ou maus-tratos no momento da prisão. Para 31,8% não foi feita qualquer pergunta nesse sentido.
O que é audiência de custódia
A audiência de custódia é uma reunião entre o preso em flagrante delito com um juiz. O objetivo é permitir uma análise da prisão e garantir que o acusado se defenda. A medida é uma aplicação dos Tratados de Direitos Humanos ratificados pelo Brasil.
Nesse encontro, o juiz decide se a prisão foi necessária e deve ser mantida ou não. Os resultados principais possíveis são: o relaxamento de eventual detenção ilegal, concessão de liberdade provisória (com ou sem fiança), substituição da prisão por medidas cautelares, conversão da prisão em flagrante em preventiva e um acordo para evitar a judicialização do conflito.
A audiência também tem um papel no combate à violência policial. Ela serve para permitir que o juiz, o membro do ministério público e da defesa técnica conheçam de possíveis casos de tortura e tomem as medidas adequadas.
Encarceramento em massa
A audiência de custódia é uma forma de desafogar as prisões brasileiras. Segundo o Depen, até junho de 2016, o Brasil atingiu 727 mil presos. O País ultrapassou a Rússia em 2015 e chegou À terceira maior população prisional do mundo, com a marca de 342 detentos por 100 mil habitantes.
Quanto ao número de presos provisórios, o percentual ultrapassa 50% do total em nove estados brasileiros. A média nacional é de 40%.
O mesmo levantamento do Depen mostrou que a superlotação também aumentou. A taxa de ocupação das prisões ficou em 197%.
Por Marcella Fernandes