A reforma mercantilizadora e a privatização da Eletrobras colocam o País em um caminho de retração de investimentos e racionamento
Há uma crise do setor elétrico no radar, causada pelas distorções do modelo mercantil adotado em 1995, que será agravada com a reforma proposta pelo governo Temer e pela privatização da Eletrobras. A trajetória, que aponta para a nova crise, parece repetir os mesmo erros que nos levaram ao apagão de 2001. Assim como na crise anterior, o governo pretende impor as privatizações antes mesmo de discutir e definir o novo modelo do setor elétrico.
A preparação da nova crise também contém, assim como a anterior, elementos de erros de planejamento dos governos, de má gestão do setor (inclusive ONS e Aneel) e um período de seca. O mais preocupante, todavia, é que as atuais propostas do governo, ao invés de apontarem para solução da crise, devem agravar os problemas enfrentados hoje pelo setor elétrico brasileiro.
Especialistas do setor têm recorrentemente advertido o governo para os claros sinais de iminência de uma nova crise, que já afeta o preço da energia, e que deve se agravar a menos que o governo planeje manter os baixíssimos índices de crescimento da economia por um longuíssimo tempo.
A ausência da oferta de energia ainda ampliaria o espaço para especuladores e atravessadores ganharem muito dinheiro no cenário de escassez. Mas o problema vai muito além. Isto porque este cenário que se desenha à frente, com a privatização e a interrupção total de novos investimentos pela Eletrobras, coloca em risco o abastecimento de energia do País e, assim, seu desenvolvimento econômico.
Os dados do início de novembro de 2017 mostram que o estoque de água armazenada na Região Sudeste, que corresponde a 70% da capacidade nacional de acumulação, estava em apenas 17,7% de seu total no início de novembro. A Região Nordeste, que corresponde a 17,8% do estoque nacional, estava com apenas 6% de água acumulada.
Os estoques das demais regiões – com exceção da Região Sul – também estavam em queda. Os reservatórios apresentaram recentemente uma leve recuperação, mas nada tranquilizador. Um indicador da gravidade da situação é a quantidade de energia armazenada dividida pelo consumo de cada mês, que permite visualizar quantos meses sem chuva nós conseguiríamos suportar. É o que podemos chamar de “poupança de energia”.
Entre 2003 e 2012, a energia armazenada correspondia a algo entre 3 e 4 meses de poupança. Em dezembro de 2016, voltamos aos patamares do período pré-crise 2001, quando tínhamos armazenados aproximadamente 1,5 meses de consumo apenas.
As coincidências com o período do apagão não param por aí. Os erros de planejamento no setor elétrico, a condução da política energética guiada pelos interesses do setor financeiro, o sucateamento das empresas públicas, a redução dos investimentos estatais, a intenção de alterar o marco regulatório do setor às pressas e sem o devido debate com sociedade e a coalização de interesses privatistas no Congresso são algumas das semelhanças mais gritantes. Estamos, portanto, assistindo ao mesmo filme dos anos 1990, só que desta vez o ritmo está muito mais acelerado.
As semelhanças são tantas que montamos um quadro resumo:
E a situação atual do setor elétrico só não é mais grave por conta do colapso da economia e do desemprego recorde, que se refletiram num consumo de energia elétrica bem abaixo do projetado. Uma retomada do crescimento econômico poderia causar uma rápida elevação da demanda por energia elétrica.
Estamos, portanto, entre a crise econômica e a crise energética. Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come. É possível observar no gráfico abaixo que a carga (necessidade de energia para atender os consumidores) está estagnada desde março de 2014 (linha preta). Ou seja, se não estivéssemos em recessão, certamente estaríamos enfrentando já um racionamento (a linha verde tracejada mostra como estaria a carga se não estivéssemos em recessão).
É fato que existe uma forte correlação entre crescimento (ou capacidade para crescimento) da economia e oferta de energia elétrica. Para se ter uma ideia, entre 1980 e 2010 a economia brasileira cresceu a uma taxa média de 2,4%, enquanto a oferta de Energia Elétrica Brasileira (EPE) cresceu a uma taxa média anual de 4,7%. A EPE planeja que a oferta interna de eletricidade cresça a uma taxa média de 4,2% nos próximos anos. A necessidade de investimentos é, portanto, significativa.
Nos momentos de crescimento econômico, quando há necessidade de elevação dos investimentos no setor, é a Eletrobras quem garante a efetivação dos investimentos. Assim também ocorre quando há redução dos investimentos em energia elétrica por parte do setor privado. Tanto assim que a Eletrobras, através de seus investimentos em geração (corporativos e em SPEs), foi responsável por aproximadamente 48% da agregação de capacidade instalada em 2015 e 45% em 2016. Estes dados atestam a importância da Eletrobras, garantindo a continuidade da expansão da capacidade instalada do setor elétrico.
Caso o plano do governo para a Eletrobras seja levado adiante, dependeremos apenas dos investimentos privados para suprir a grande necessidade de investimentos do País. A redução dos investimentos da Eletrobras se iniciou em 2015, ainda no governo Dilma, e se aprofundou sob a gestão do governo Temer quando a Eletrobras reduziu seu plano de investimentos para patamares semelhantes aos da década de 1990.
A crise do setor coincide com o período de redução de investimentos da Eletrobras. Não por acaso. Pelo projeto do governo Temer, no qual a Eletrobras deve se guiar apenas pelos interesses do mercado financeiro, a previsão é que os investimentos sejam ainda mais reduzidos nos próximos anos. O atual presidente da Eletrobras, em declaração recente, afirmou que o investimento da Eletrobras esse ano deve ser de apenas 5 bilhões de reais, cerca de metade dos investimentos de 2013. Voltamos assim a uma situação muito parecida com a de 2001.
Diante de um setor intensivo em capital e que demanda investimentos de longo prazo, com um histórico de instabilidade institucional e insegurança jurídica, os riscos associados aos investimentos levam o setor privado a exigir taxas proibitivas. A privatização da Eletrobras tiraria do Estado brasileiro o único instrumento de que dispõe hoje para enfrentar esse desafio de forma soberana e atrelada a uma estratégia nacional de desenvolvimento e segurança energética.
Por isso é preciso alertar que o governo Temer está prestes a entregar uma empresa cujo papel econômico tem alcance nacional e de longo prazo na mão de investidores temporários e oportunistas. Por trás dos planos do governo existe um grande interesse de grupos hegemônicos, conglomerados industriais e financeiros, de associar privatização com falta de investimento na agregação da capacidade, financeirização do setor elétrico, desregulamentação, especulação e perda da função social das empresas públicas.
Estamos no mesmo círculo vicioso da privatização dos anos 1990 que nos levará da reforma mercantilizadora e privatização para a retração de investimentos até chegarmos em um novo apagão.
Para um país que retrocede no combate ao trabalho escravo e precariza as condições de dignidade no trabalho, retroceder também ao período de falta de energia elétrica seria apenas mais um ato de um governo sem o mínimo de apoio popular e consciência coletiva. Ou lutamos agora para barrar essa reforma do setor elétrico e a privatização da Eletrobras ou iremos pagar caro no futuro. Literalmente.
Fonte: Carta Capital