Como a violência doméstica atinge as mulheres no Nordeste

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Estudo mostra impactos da violência de gênero em capitais nordestinas. Com 19,7%, Salvador ostenta o pior índice

Ele me batia como se estivesse brigando com um inimigo dele. Dizia que ia mudar, mas no dia seguinte me maltratava de novo”, recorda a pernambucana Cileide Cristina da Silva, hoje com 48 anos, sobre as duas décadas de violência doméstica sofridas por ela nas mãos do ex-marido.

A violência física e psicológica cessou quando Cileide se tornou a primeira brasileira a utilizar a Lei Maria da Penha, em 22 de setembro de 2006, dia em que a legislação entrou em vigor no País, com a ajuda da ONG Centro das Mulheres do Cabo.

“O delegado disse que eu inaugurei a Lei Maria da Penha no Brasil”, conta.

Cileide conseguiu romper o ciclo de violência, mas, infelizmente, a violência física, sexual ou psicológica continua a marcar a vida de três em cada 10 nordestinas.

Os números fazem parte do ciclo de pesquisas Condições Socioeconômicas e Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher. O último estudo, divulgado na quinta 23, baseou-se no depoimento de 10 mil mulheres, com idade entre 15 e 49 anos, moradoras das capitais Aracaju, Fortaleza, João Pessoa, Maceió, Natal, Recife, Salvador, São Luís e Teresina.

O estudo completo está disponível ao final da reportagem.

Realizado pela Universidade Federal do Ceará (UFC) em parceria com o Instituto Maria da Penha e o Institute for Advanced Study in Toulouse, o estudo também mostrou que quatro em cada 10 mulheres crescidas em um lar violento acabam sofrendo a mesma violência na fase adulta, fenômeno definido pelos pesquisadores como “transmissão inter-geracional de violência doméstica”. Ao mesmo tempo, 40% dos parceiros que cometem agressões também residiram em lares violentos.

O caso de Cileide é um retrato, dentre tantos outros, da transmissão da violência através das gerações. As agressões tiveram início logo em sua primeira gravidez e impactaram fortemente os filhos do casal, que já não podiam ter contato com os avós devido a proibição e ameaças do pai agressor e alcoólatra. Cileide, que hoje é vendedora ambulante, viu-se perdida e sem apoio familiar, sobretudo durante os períodos das gestações.

“Quando estava grávida do primeiro filho a violência psicológica começou, ele me chamava de burra e outras coisas. A partir daí com o passar dos anos, ele já não se importava mais em bater só em mim, e passou a agredir meus quatro filhos para me atingir. Ele me empurrava em cima das coisas, jogava panela de comida em cima de mim”, relata.

O relatório, lançado em Brasília durante um evento promovido pela ONU Mulheres, também revela que 23% das nordestinas possuem lembranças da mãe sendo agredida e 13% têm conhecimento de que a mãe do parceiro também sofreu algum tipo de agressão.

Segundo a pesquisa, uma em cada cinco mulheres teve contato com algum tipo de violência doméstica na infância ou na adolescência.

A pesquisa aponta uma taxa de 19,7%, na prevalência de violência doméstica física em Salvador, seguido de Natal, com 19,3%. Fortaleza tem o posto de terceira capital nordestina com maior taxa desta violência, com um índice de 18,9%.

De um ano para cá, 11% das mulheres nordestinas foram vítimas de violência psicológica, 5% sofreram agressões físicas e 2% violência sexual em ambiente doméstico e familiar.

Negras e pobres sofrem mais violência

A classe social também revela-se um fator determinante para a probabilidade de uma mulher no Nordeste sofrer com a violência de gênero: com o aumento da renda, a vulnerabilidade da mulher diminui.

Ao mesmo tempo, nordestinas com maior acesso a educação apresentam taxas de prevalência de violência doméstica durante a gravidez menor do que aquelas com baixo nível educacional. Apenas 0,9% das mulheres com Ensino Superior reportaram ter sido fisicamente agredidas pelo parceiro durante a gravidez. Já aquelas com menor instrução ou Ensino Fundamental incompleto possuem um percentual de 9,4% de violência durante a gravidez, um número dez vezes superior.

“Mulheres com Ensino Fundamental completo apresentam taxas de 7,3%. Já mulheres com o Médio completo possuem prevalência de 5.2%. Os resultados mostram também que mulheres que experimentaram sucessivas gestações apresentam maiores taxas de prevalência de violência doméstica na gravidez”, ressalta o estudo. Mulheres que ganham menos também foram as mais expostas à violência doméstica na infância.

A violência doméstica no Nordeste também tem cor. Uma em cada cinco entrevistadas brancas afirmou ter presenciado episódios de violência doméstica contra a mãe. Já entre as mulheres negras a taxa é maior: uma em cada quatro já presenciou o mesmo ocorrido.  Além disso, dois terços das vítimas de agressão física na gravidez eram pretas ou pardas.

Cileide, que hoje vende castanhas, laranja e água nas estradas de Recife, faz um apelo às mulheres negras e pobres que convivem com violência doméstica:

“Tem mulheres de baixa renda que vivem essa situação que, por não serem ricas ou brancas, pensam que nada vai mudar. Mas elas tem que saber que independente da condição financeira, da cor da pele ou dos olhos, a lei vai funcionar do mesmo jeito. O agressor da mulher rica ou da mulher pobre é um agressor e merece cadeia do mesmo jeito”, opina.

Segundo o pesquisador e analista de políticas públicas do Instituto de Pesquisa e Estratégia Econômica do Ceará (Ipece), Victor Hugo Oliveira, o Nordeste é mais desassistido do que as regiões Sul e Sudeste no que tange às políticas para mulheres.

“São estados que em geral são pobres, no sentido de que têm pouco orçamento público, e em comparação com outras regiões, tem menos política para mulheres. Nas estatísticas de feminicídio, por exemplo, o nordeste tem números maiores do que a região sul-sudeste”.

O pesquisador também ressalta que os homens devem ser inseridos dentro das políticas públicas de combate a violência doméstica, a exemplo do “Grupo Reflexivo de Homens: Por uma Atitude de Paz”, criado em 2012 no Rio Grande do Norte.

“Uma política como esta, que tenta verificar o comportamento masculino e melhorar esse comportamento sem dúvida pode ser muito benéfica”, afirma.

A pesquisa também revela que a violência doméstica prejudica a vida profissional das mulheres no Nordeste, o salário das mulheres vítimas dessa violência é 10% menor do que o de mulheres que não sofrem dessas opressões, além disso, a duração média no emprego é 21% menor quando comparadas com mulheres que não sofrem violência doméstica.

A violência doméstica durante a gravidez

O estudo também olhou para a violência doméstica contra gestantes.

As capitais Natal, Salvador, Recife e Fortaleza apresentam maiores taxas que a média dos demais estados nesta triste estatística. A capital do Rio Grande do Norte registra o maior nível de violência contra grávidas: 12%, o triplo do verificado em Aracajú, capital com a menor taxa de prevalência desta violência (4,3%).

Victor Hugo Oliveira ressaltou que a violência doméstica contra gestantes coloca em risco não somente a mulher, mas também a saúde da criança ainda no útero. “Então, a agressão é duplamente perpetrada, podendo levar mãe e filho(a) ao óbito”, explica.

A incidência de violência durante a gestação é 10 vezes maior sobre mulheres com pouco grau de instrução. Além disso, negras e pardas representam 77,4% dessas mulheres que sofreram agressão durante a gravidez. Mais de 4 mil mulheres responderam as questões relativas à experiência de violência na gestação.

A pesquisa aponta que os impactos da violência doméstica sobre a mulher gestante são diversos. Vão do sangramento vaginal, ganho de peso, hipertensão e depressão até chegar em casos mais graves, como o abortamento e a morte materna.

Para a criança que sobrevive à violência intrauterina, há elevada chance de nascimento com baixo peso e/ou prematuridade, importantes preditores da mortalidade neonatal, isto é, até 28 dias após o nascimento.

Confira o estudo:

Fonte: Carta Capital