“Tudo flui e nada permanece”. Com esse aforismo, o mais obscuro dos filósofos pré-socráticos (e também um dos primeiros dialéticos) resumia sua visão da história como processo de permanente transformação, em que nada resiste imutável ou em equilíbrio ao tempo.
A irreversibilidade do movimento derivaria da noção de que substâncias do presente não podem retornar ao que foram no passado, pois adquirem constantemente novas propriedades e passam a se reger por novos princípios. A passagem do tempo figuraria como motor de mudanças incontornáveis, de modo que um olhar aguçado sobre o mundo exigiria atenção aos seus efeitos transformadores. E isso nada tem de trivial.
Não é necessário grande esforço para encontrar em teorias econômicas e políticas contemporâneas, ainda que não declaradamente, explicações a-históricas sobre o mundo. Nessas abordagens, o equilíbrio (da economia ou da política) é o estado natural das coisas em todas as épocas; que pode até ser alterado por eventos excepcionais, mas tão logo estes cessem o equilíbrio tende a voltar.
A noção de tempo, quando existe, refere-se apenas à sucessão cronológica de eventos. Não há processos específicos nem acontecimentos irreversíveis. Toda discussão centra-se em que tipo de equilíbrio pode ser alcançado dadas certas condições econômicas e políticas locais ou em como superar choques desestabilizadores.
Sendo menos abstrato e pensando no caso brasileiro, parte dos e das analistas e mesmo de partidos políticos no país veem os acontecimentos desde o golpe de estado como um pequeno hiato de anormalidade na sólida democracia brasileira, que está prestes a ser superado quando as eleições de 2018 redimirem o lapso autoritário do governo interino.
Já outra parte, crítica à primeira, argumenta que o hiato foi, na verdade, o período democrático entre 1988-2016 e que o golpe foi apenas o retorno a um estado que nos encontrávamos desde a colonização.
Os sinais invertem-se, mas ambas as visões tratam o golpe como “choque” que caminha para/afasta-se de uma situação de equilíbrio natural do país. Nas próximas eleições, essa é a conclusão geral, seria possível se retornar a um estado anterior.
Outras pessoas, por sua vez, de modo mais acertado, insistem em alertar para os efeitos destrutivos já provocados no funcionamento e na cultura política do país, na dinâmica de seu conflito distributivo, no andamento de suas instituições. Nesse registro, o golpe de estado no Brasil e os eventos políticos que o sucederam se mostram irreversíveis.
Isso significa que não será possível sair incólume a eles, retornando aos processos sociais, econômicos e políticos anteriores. Para ficar no exemplo em maior destaque, esvaem-se dia a dia o imaginário emancipatório e certa lealdade entre adversários políticos construídos em torno da “constituição cidadã”, bem como a ficção de um judiciário independente e alheio a questões partidárias.
Há outros exemplos: já se pode ver que o revés nos investimentos futuros na área da saúde comprometerá a própria existência do SUS, e que, em pouco tempo, as alterações nas regras que regem relações de trabalhos devastarão as condições de vida de toda uma classe média assalariada. Além disso, o rebaixamento do status (que, cá entre nós, nunca foi tão elevado) da política de ciência, tecnologia e inovação impossibilitará o país de participar da próxima e iminente onda de revoluções tecnológicas. Em todos esses casos, já há perdas permanentes, cujos resultados se farão sentir crescentemente.
Significa também que as eleições de 2018 não resolverão o conjunto de questões que se acumula diuturnamente.
Algo de importante à ordem democrática desnaturou-se no Brasil. Talvez seja o respeito à imparcialidade do procedimento eleitoral, tão esgarçado com o processo do impeachment de Dilma Rousseff. Não há mais certeza de que o próximo resultado será respeitado e não há confiança no discernimento de futuros julgadores.
Talvez seja o padrão mínimo de respeito às diferenças necessário para uma convivência plural, frontalmente contestado por grupos políticos em ascensão no país. Talvez ambas as coisas. Não há mais um “nós” possível.
O fato é que não haverá uma bala de prata para solucionar atuais impasses brasileiros. A linguagem política vem se tornando violenta a um ponto sem retorno imediato e as manifestações, ora menores ora maiores, mas contínuas de intolerância e ódio empurram a noção mais elementar de direitos humanos para um dos lados do espectro político – deixando, então, de ser “regra do jogo”.
Além disso, denúncias (fartas de provas) quase diárias de malfeitos de grandes figuras nacionais criam uma situação em que razões e valores perdem relevância e apenas a força bruta e os interesses passam a governar o país, à luz do dia, esvaziando o debate público e transformando a política em um teatro macabro.
Na esteira disso, o cinismo institucionalizado dos governantes e seus apoiadores (numericamente cada vez menores, nem por isso mais fracos) vem criando um enorme fosso entre poderosos e pessoas comuns, que em algum momento será preenchido sabe-se lá pelo quê ou por quem.
Neste novo cenário, o candidato do campo progressista com maiores chances de vitória ainda é Lula – que, contudo, não poderá ser o mesmo de 2006, muito menos o de 2002.
Perseguido e acusado com truculência ímpar, Lula tem feito de sua candidatura estratégia de sobrevida política e pessoal.
Ressurge como esperança de novas transformações para a base eleitoral já tradicional do lulismo, apesar de seu ímpeto conciliador (e suas promessas de perdoar os que tramaram o golpe) torná-lo uma opção impalatável para parte da esquerda. Por outro lado, uma parcela igualmente grande da população o considera um criminoso e está disposta a muita coisa para vê-lo fora do poder. Visto pela situação de Lula, o embaraço do país não poderia ser maior.
Como alternativa a Lula aparecem figuras sinistras, as mais diversas. Como regra, pleiteiam se afastar da silhueta de político tradicional, simplificar as respostas aos problemas do país e encontrar retoricamente inimigo ou causa única a ser atacada. Vistos em conjunto, os candidatos indicam um decaimento geral da atividade política – no momento em que esta seria mais necessária que nunca. Esse processo não é, de fato, exclusivo ao Brasil e faz parte de um movimento mais abrangente de reação a certa gramática política que inibe transformações profundas do status quo. A especificidade do país está no ritmo vertiginoso que essa dinâmica adquiriu, implodindo cotidianamente instituições que se vinham construindo.
De modo esquemático, pode-se dizer que eleitores e eleitoras de Lula esperam que as reformas realizadas após o golpe de estado sejam revogadas, que se ampliem direitos e se encerre a política de perene austeridade. Invertendo o ponto de vista, dos candidatos adversários, eleitores e eleitoras esperam continuidade e aprofundamento das reformas promovidas, enrijecimento da política de segurança pública e maior conservadorismo em temas morais – além de que se esforcem para ser técnicos e não políticos (pedido tão utópico quanto ingênuo).
Em todo caso, a legitimidade do próximo presidente se pautará pela performance de sua gestão (por ambos os lados do espectro político) e não pelo procedimento que terá lhe alçado ao poder. Trata-se de um rio em que já nos banhamos, mas que também não é o mesmo – para usar outra expressão do mesmo filósofo grego. Parece-me agora que próprio critério de avaliação de desempenho encontra-se socialmente bastante fragmentado.
Divisões sociais, políticas e culturais e projetos antagônicos de país já existiam há dois anos (e muito antes disso), mas não como aparecem agora e nem estavam diante dos limites e possibilidades atuais. Qualquer novo governo que ocupe a presidência em 2019 assumirá um país bastante distinto daquele deixado por Dilma – possivelmente pior, se visto de um ponto de vista democrático.
“Tudo é fluxo”, sugere outra versão do aforismo de Heráclito (535-475 A.C.): nem sempre na intensidade e direção que gostaríamos.
Ainda é o Brasil, mas é outro.
Fonte: Justificando