Educadores temem o recrudescimento da intolerância após o STF liberar o ensino religioso confessional
Ao liberar o ensino religioso confessional nas escolas públicas, o Supremo Tribunal Federal enfraqueceu o debate sobre a diversidade de crenças. Enquanto o Judiciário entende que as aulas ministradas por bispos, padres, pastores e líderes de religiões específicas não ferem a laicidade do Estado, por serem facultativas, educadores questionam as implicações práticas da medida.
Para um grupo, o equívoco remonta a 1988, quando os constituintes incluíram o tema como disciplina do Ensino Fundamental. Outra vertente alerta para a necessidade de impor limites à oferta, de modo a assegurar o respeito às liberdades individuais dos estudantes.
“O ensino religioso não é o espaço para discutir diversidade. Isso é uma armadilha criada para justificar a sua presença nas escolas”, afirma Salomão Ximenes, professor do programa de pós-graduação em Políticas Públicas da Universidade Federal do ABC, um dos que puxam o coro pela retirada do tema da Constituição.
Para ele, há uma confusão normativa intencional, que serve de justificativa para diversas violações da liberdade de pensamento e crença. “No placar do julgamento, foram 6 votos a favor do ensino confessional, 5 pelo modelo não confessional e zero pela laicidade. Não faz o menor sentido ter aulas de ensino religioso, seja ele qual for.”
Na avaliação do especialista, o Supremo deveria lançar mão de uma interpretação não literal da Constituição, capaz de fortalecer as Diretrizes Curriculares Nacionais, sobretudo no campo de Direitos Humanos, reguladas pelo Ministério da Educação. “Elas contemplam os temas da diversidade e do pluralismo religioso em uma perspectiva laica”, emenda.
O posicionamento é comungado por Denise Carreira, coordenadora da ONG Ação Educativa. Doutora pela Faculdade de Educação da USP, ela entende que o ensino religioso não pode ser abordado no âmbito da educação pública. “Deve ser reservado às famílias, ao espaço das próprias denominações religiosas e às escolas particulares confessionais.”
Os especialistas alertam para a impossibilidade prática de garantir o respeito à diversidade no ensino confessional, uma vez que não serão contempladas as diferentes perspectivas religiosas, inclusive aquelas de quem não professa fé alguma. Para Ximenes, a decisão do STF ajusta-se à demanda de determinadas igrejas e religiões majoritárias, com destaque para a Igreja Católica.
“Seu objetivo não é assegurar a diversidade, mas promover as maiorias e massacrar as minorias.”
O tema requer especial atenção. O Brasil é um país majoritariamente católico. Tem observado forte expansão dos evangélicos, mas também um crescimento de denominações minoritárias, dos ateus e dos agnósticos, sem falar do sincretismo religioso, um traço da cultura nacional.
Nos últimos tempos, as religiões de matriz africana tornaram-se alvo da intolerância. No Rio de Janeiro, foram registrados ao menos 79 ataques a terreiros de candomblé e umbanda em 2017. São Paulo acumula 27 atos de violência este ano, oito deles apenas nas últimas três semanas.
Dados do Disque 100, vinculado ao Departamento de Ouvidoria Nacional dos Direitos Humanos, indicam crescimento de 119% nos casos de intolerância religiosa no Rio de Janeiro em 2016, na comparação com o ano anterior.
De julho a setembro de 2017, a Secretaria de Estado de Assistência Social e Direitos Humanos contabilizou 39 casos de intolerância religiosa.
Para o secretário estadual de Direitos Humanos, Átila Alexandre Nunes, a decisão do STF pode acirrar ainda mais os conflitos. “Precisamos promover a cultura de convivência e harmonia, respeitando a crença de cada estudante. Separar turmas por religião pode estimular episódios de intolerância dentro e fora das escolas. Além disso, seria inviável garantir professores de todas as religiões em cada unidade de ensino.”
A Secretaria de Educação do Rio decidiu manter o ensino religioso não atrelado a uma religião específica. Embora o Estado tenha uma lei que regulamente o ensino religioso confessional, assinada pelo ex-governador Anthony Garotinho, a secretaria informou em nota que seria necessária uma grande quantidade de salas de aula para dividir os estudantes por credo.
As redes de ensino são obrigadas a oferecer aulas de ensino religioso no ensino fundamental, mas as matrículas são facultativas. “O estudante não pode ser automaticamente matriculado nessa disciplina ao ingressar na escola.
Hoje é o que acontece na maioria dos casos”, alerta Ximenes. Esse processo, explica, só deveria ser efetivado mediante expresso interesse das famílias. Do contrário, viola-se o princípio da livre escolha.
Além disso, o ensino religioso não pode contar na carga horária obrigatória das escolas, para que os alunos não optantes não sejam prejudicados com faltas. Para estes, recomenda-se um desenho curricular alternativo. Poderiam ser dispensados da aula no último horário ou frequentar alguma disciplina de conteúdo laico no período.
Os educadores defendem, ainda, a imposição de limites ao proselitismo. O artigo 19 da Constituição veda à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos municípios estabelecerem cultos religiosos ou subvencioná-los. “Não há lei ou decisão judicial que autorize a prática religiosa na escola, como orações ou sermões”, diz Ximenes. “O ensino religioso é uma exceção dentro do marco legal e, como tal, tem de ser interpretado de forma restritiva.”
Fonte: Carta Capital