Nas ruas do Brasil, a ditadura ainda vive

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Da Agência Publica

Vias públicas batizadas em homenagem a torturadores e mandantes do regime militar estão presentes em todo o país

Carlos Severo/ Fotos Públicas

Uma rua de menos de 200 metros no centro de São Paulo leva o nome de Vladimir Herzog. Ela homenageia o jornalista que foi torturado e morto pela ditadura militar – que governou o país de 1964 até 1985 – e se constitui em uma pequena exceção: a maioria das ruas que levam os nomes de personagens do período homenageia o lado dos ditadores e seus colaboradores.

É o caso da Avenida Presidente Castelo Branco, parte do complexo de vias que forma a Marginal Tietê, a menos de 500 metros de distância da rua Vladimir Herzog. Ela foi batizada em referência ao general que tomou o poder no Golpe de 1964 – iniciando o processo autoritário que culminaria no assassinato de Vladimir Herzog e de pelo menos mais 433 pessoas, muitas das quais seguem desaparecidas até hoje, sem que seus corpos tenham sido encontrados.

Em todo o território do Brasil, são muitas ruas nomeadas em homenagem a personagens sombrios de nossa história – incluindo aqueles que estão entre os 377 apontados como responsáveis por torturas e mortes pela Comissão Nacional da Verdade (CNV), um comitê que investigou os crimes do Estado naquele período.

Embora o número de vítimas reconhecidas seja maior que o número de criminosos levantados pela CNV, a soma do comprimento de ruas com o nome de vítimas é bem menor. São aproximadamente 160 km homenageando os que tombaram pela mão do regime contra mais de 2000 km de vias que fazem referência aos algozes de acordo com o mapeamento feito nas ruas de todos os estados brasileiros.

No projeto, foram usados dados publicados pelo OpenStreetMap, uma plataforma colaborativa em que cada usuário pode adicionar e atualizar informações sobre localizações geográficas e endereços. O banco de dados não é perfeito: há inconsistências na padronização dos nomes e, principalmente, algumas das vias são representadas por mais de um item, o que impossibilita um contagem precisa do número de logradouros. Uma descrição detalhada sobre a produção está disponível aqui.

Vielas estreitas e grandes estradas

Não é apenas em número que as ruas com nome de generais e oficiais têm maior destaque do que as vias que homenageiam suas vítimas. Há também uma diferença geográfica e simbólica.

Enquanto grandes rodovias como a já mencionada Avenida Castelo Branco e a Ponte Costa e Silva (nome oficial da Ponte Rio-Niterói) comemoram o regime militar, os locais de memória da resistência se concentram em áreas periféricas e mais pobres. Em São Paulo, por exemplo, a maioria das ruas que homenageiam as vítimas se concentra em regiões pobres da Zona Norte e da Zona Sul, nos bairros de Jova Rural e Grajaú, respectivamente.

O mesmo acontece no Rio de Janeiro, onde diversas ruas que homenageiam militantes da resistência ficam no bairro operário de Bangu.

Uma grande parcela dos locais que relembram os líderes militares foram batizados ainda sob o governo ditatorial. Em contraste, os endereços que rememoram os mortos e desaparecidos só apareceram depois de esforços empreendidos por diferentes setores da sociedade civil.

Mudanças de nome

No centro de São Paulo, uma via elevada corre por cerca de 3.5km, atravessando quatro bairros diferentes. Popularmente conhecida como Minhocão por seu comprimento e aparência, essa controversa intervenção urbana se chamou oficialmente Elevado Costa e Silva em referência ao segundo presidente da Ditadura, desde que foi finalizada, em 1970, até meados de 2016.

No meio do ano passado, porém, ela foi rebatizada de Elevado Presidente João Goulart, uma homenagem ao último líder civil a governar o país antes do Golpe de 1964.

A mudança faz parte de um movimento que acontece conforme as instituições brasileiras olham para o passado e tentam decidir de que maneira ele deve se refletir no presente e no futuro. Ainda que o presidente João Goulart tenha sido perseguido e perdido os direitos políticos durante o regime, ele não é considerado oficialmente uma vítima de violações de direitos humanos. Paulo Stuart Wright, porém, é.

Ex-deputado estadual de Santa Catarina, filho de dois missionários norte-americanos, Wright foi perseguido pelos militares desde o início do regime. Cassado pelo golpe militar ele se exilou no México em 1964, voltando clandestinamente ao país no ano seguinte para militar na resistência contra a ditadura. Wright desapareceu em 1973 e sua morte só foi confirmada quando arquivos secretos foram abertos onze anos depois, perto do final da ditadura. Em 2015, uma rodovia em seu estado foi rebatizada em homenagem a ele.

Confronto aberto

Um dos momentos mais dramáticos da política brasileira nos últimos anos, o impeachment de Dilma Rousseff (PT), foi deflagrado na Câmara dos Deputados. Jair Bolsonaro, ex-capitão do Exército e figura proeminente da extrema-direita, estava entre os deputados que votaram contra Dilma – e ele fez isso de maneira controversa.

“Perderam em 1964 e perderam novamente em 2016”, disse Bolsonaro comparando o golpe militar ao impeachment. “Pela memória do Coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o terror de Dilma Rousseff […] eu voto sim [ao impeachment]”.

Bolsonaro homenageava o comandante do DOI-CODI de São Paulo, a câmara de tortura e morte que operava contra os inimigos do regime entre 1970 e 1974. Ustra, que há dois anos morreu livre e, segundo ele, sem arrependimentos, é considerado um dos agentes mais violentos das forças de repressão da ditadura.

Suas vítimas descreveram diferentes métodos de tormento, como choques elétricos e a inserção de ratos vivos na vagina de prisioneiras. Em alguns dos casos mais brutais, as sessões de tortura foram testemunhadas pelos filhos e cônjuges dos dissidentes. A própria Dilma passou meses detida em prisões do DOI-CODI nos anos 70 por participar de movimentos de resistência armada.

Durante o impeachment de Dilma, grupos que simpatizam com Bolsonaro tomaram as ruas, pedindo que as Forças Armadas “salvem o país do comunismo outra vez”– retórica que evoca a justificava usada pelos partidários do Golpe Militar há 43 anos. Atualmente, o candidato à presidência Jair Bolsonaro aparece em segundo lugar nas pesquisas eleitorais, atrás apenas do ex-presidente Lula, também detido pela ditadura militar. Mais uma evidência de que o passado não está apenas confinado nos nomes de rua – ele insiste em voltar à superfície de tempos em tempos.