Atribuir valor às coisas nunca foi tarefa simples. Valorar o fruto e a contrapartida à doação que representa o trabalho humano, que extrapola o mero aspecto material, é tarefa significativamente mais complexa.
“Sim, todo amor é sagrado
E o fruto do trabalho
É mais que sagrado
Meu amor
A massa que faz o pão
Vale a luz do teu suor”
A partir da lindíssima interpretação de Maria Gadú para os geniais versos do mineiro Beto Guedes (Amor de Índio, 1978), provocado pela lúdica referência ao caráter sagrado do trabalho (ou mais do que isso!), ocorreu-me a necessidade de refletir sobre o impacto da irrefletida e oportunista “reforma trabalhista” deste preocupante ano de 2017.
Os estudiosos relatam, em geral de forma exageradamente simplória, a superação das relações de troca para a sociedade em que as transações passaram a ser mediadas pela moeda. O uso do dinheiro exigia que tudo tivesse um valor relativo, de modo que a ele pudesse ser convertido.
Apenas no século XIV, com o declínio do poder feudal, ganhou impulso a prática da remuneração pelo tempo trabalhado. Os servos, no modelo anterior, cultivavam a terra de nobres em troca de proteção e da possibilidade de tirar dela seu sustento.
Ao contrário dos escravos, os servos não eram propriedade de ninguém. O senhor latifundiário só podia vendê-los junto com as terras onde eles já trabalhavam. Antes da invenção da moeda, o trabalho humano era remunerado com mercadorias. Do sal, alimento considerado divino pelos romanos, deriva a palavra salário, como porção dada em pagamento de horas do trabalho humano.
O desenvolvimento do capitalismo instituiu o pagamento da mão-de-obra que, alterando substancialmente o arranjo social e econômico anterior, confere ao trabalhador poder de compra e o habilita a participar do mercado.
Superado o período da simples troca, em momento algum foi tarefa simples atribuir o valor relativo do trabalho, nem equacionar os conflitos decorrentes do complexo modelo de subordinação que embasa a engenhosa organização social instituída. Como comparar o preço da atividade humana com o valor econômico de uma mercadoria e, ao mesmo tempo, assegurar o recebimento de valores que permitam a subsistência e o movimento da engrenagem econômica?
Algumas teorias econômicas tiveram maior destaque no propósito de determinar o valor relativo das mercadorias, relacionando-as à quantidade de tempo de trabalho necessário à sua produção. A essa formulação, conhecida como teoria do valor-trabalho, opõe-se à Escola da Economia Clássica que enfatiza a competição e a concorrência em que, no idealizado modelo da concorrência perfeita, o equilíbrio de preços seria atingido espontaneamente.
A teoria do valor-trabalho também recebe críticas de economistas para os quais o trabalho, sendo um serviço, é valorável e poderia, como qualquer bem econômico, ser negociado livremente no mercado. Essa concepção pretende explicar os valores segundo a utilidade e a raridade do bem ou do serviço considerado.
O liberalismo extremado, na transição do século XIX para o século XX, permitindo um quadro de abusos e de visível miséria nas crescentes aglomerações urbanas despertou a preocupação para os riscos da questão social. O sinal de alerta foi captado por pensadores, pela doutrina social da Igreja católica e por líderes interessados em impedir o avanço do comunismo ou a radicalização geral.
Na Igreja Católica, o quadro de distorções, a situação da classe trabalhadora e a influência das ideias distributivas foram captados pelo papa Leão XIII. Em 1891, na Encíclica Rerum Novarum: sobre a condição dos operários; discorreu sobre a agitação febril da sociedade, num contexto de mudanças impactantes, que, segundo visualizava, tendiam a passar da política para a economia social.
Sobre a determinação dos salários, lembrando a passagem do Livro de Gênesis: “Com o suor do teu rosto comerás o teu pão”; assinalou que acima da livre vontade está uma “lei de justiça natural, mais elevada e mais antiga, a saber, que o salário não deve ser insuficiente para assegurar a subsistência do operário sóbrio e honrado”. Em sintonia com a realidade, asseverou que se o operário, constrangido pela necessidade ou forçado pelo receio de um mal maior, submete-se à imposição de condições mais duras do que as aceitáveis, caracteriza-se uma “violência contra qual a justiça protesta”.
Entre as nações, representando a preocupação dos grandes interessados na prosperidade econômica, a Constituição da Organização Internacional do Trabalho – OIT, desde 1919, reconhece a existência de condições de trabalho que implicam miséria e privações. E alerta que o descontentamento que daí decorre “põe em perigo a paz e a harmonia universais”. Assim, destaca para a urgência da regulamentação das horas de trabalho, com a fixação de uma duração máxima do dia e da semana de trabalho, da luta contra o desemprego, e da garantia de um salário que assegure condições de existência convenientes à proteção dos trabalhadores contra as moléstias graves ou profissionais e os acidentes do trabalho.
O fato é que não há registro de um sistema liberal puro no que diz respeito ao mercado de trabalho. O grande expoente do pensamento liberal, Adam Smith, no final do século XVIII, já assinalava as manipulações de empresários que combinavam rebaixar salários e proibir as greves. Na sequência, coube a diferentes instituições ou instrumentos regular as pactuações, por vezes, pautando-as por preocupações com a garantia do mínimo civilizatório ou com a estabilidade das relações sociais.
Nesse contexto, o reconhecimento e as declarações de direitos sociais e trabalhistas surgem, no Brasil e no mundo ocidental, no início do Século XX, como valores civilizatórios mínimos. O propósito de enfraquecer esse sistema de organização social ameaça agravar o nível de desigualdade e abala o ambiente de prosperidade requerido pelo próprio mercado.
No final de 2016, a proposta do Poder Executivo para a alteração de alguns artigos da CLT, com o propósito de “aprimorar as relações do trabalho no Brasil”, chegou ao Parlamento com uma Exposição de Motivos carregada de expressões de sentido vago como a valorização da negociação coletiva entre trabalhadores e empregadores; a atualização de mecanismos de combate à informalidade da mão-de-obra; e a construção de um marco legal claro dos limites da autonomia da norma coletiva de trabalho.
Ao final da açodada tramitação da proposta legislativa – Lei 13.467/2017 – restou alterada mais de uma centena de dispositivos legais que conferiam alguma efetividade ao propósito de construção de uma sociedade que, tendo como um de seus fundamentos a dignidade da pessoa humana, pretende harmonizar os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa.
A denominada “reforma trabalhista”, ao lado da legalização de uma série de conhecidas práticas fraudulentas e/ou teses derrotadas nos tribunais, condensa dispositivos liberais que estimulam a negociação direta entre o trabalhador e o empregador, incorporando o frágil discurso da autonomia do trabalhador e afastando, em alguns casos expressamente, a possibilidade de intervenção corretiva do Estado ou dos sindicato
Num País em que se notícia, com constrangedora regularidade, a exploração de trabalhadores em condições análogas às de escravo, é desconectada da realidade a premissa de que o trabalhador teria, como regra, condições de negociar os termos de seu contrato, independentemente de instâncias de proteção”
Num País em que se notícia, com constrangedora regularidade, a exploração de trabalhadores em condições análogas às de escravo, é desconectada da realidade a premissa de que o trabalhador teria, como regra, condições de negociar os termos de seu contrato, independentemente de instâncias de proteção. O legislador foi além, previu um esdrúxulo termo de quitação anual das obrigações, com eficácia liberatória. Na mesma linha, houve grande preocupação em afastar os negócios jurídicos celebrados com os trabalhadores da análise do Poder Judiciário. Nesse sentido, chamam a atenção a autorização para a cláusula compromissória de arbitragem e a restrição à revisão de convenções e acordos coletivos de trabalho. Nesse último caso, estipulando-se que a Justiça do Trabalho balizará sua atuação pelo princípio da intervenção mínima na autonomia da vontade coletiva.
Trata-se de retrocesso denunciado inclusive por organismos internacionais que fazem análises econômicas e sociais, contrariando o próprio discurso do texto pelo qual se deu o encaminhamento da proposta legislativa. Não há indicativos de que haverá aprimoramento nas relações de trabalho por meio de uma regulação que pretende impedir a manifestação do Poder Judiciário em situações em que esse deveria protestar, para lembrar os ensinamentos de Leão XIII.
A definição do valor relativo do trabalho, que não pode ser reduzida ao seu aspecto material, seguirá sendo missão de extrema dificuldade. Segue atual, portanto, a diretiva da OIT de que o trabalho, por ser fonte de dignidade, não é uma mercadoria.
Juridicamente, subsistem os parâmetros normativos que determinam que seja ele capaz de atender às necessidades vitais básicas do trabalhador e sua família, além dos demais objetivos constitucionais decorrentes da dignidade humana; social e economicamente, sua definição permanecerá sujeita à antiga constatação da OIT de que a paz para ser universal e duradoura deve assentar-se sobre a justiça social; teologicamente, seguirá sendo legítimo buscar a justa medida entre o suor e o pão, equilibrando o esforço e as necessidades.
São definições que comportam elevado grau de imprecisão quando pensadas genericamente, mas, no caso concreto, o desequilíbrio que avilta a situação do trabalhador aponta para graves consequências práticas. Como nos lembra antigo alerta da OIT, a pobreza, em qualquer lugar, é uma ameaça à prosperidade de todos, pois todos os seres humanos têm o direito de perseguir o seu bem-estar material em condições de liberdade e dignidade, segurança econômica e igualdade de oportunidades.
A nossa “reforma trabalhista”, segundo apontam estudos de experiências semelhantes na Europa e na América Latina, tende a reduzir a massa salarial. O mais provável é que tenhamos a troca de postos de trabalho relativamente seguros por formas precárias de ocupação. Não há razões para confiar que aqui será diferente. O trabalho valerá menos, numa perversa inversão do sentido da norma constitucional que determina a erradicação da pobreza e a redução das desigualdades sociais.
No espaço lúdico, enquanto não se chega à fria definição matemática do valor que espelhe a dignidade de quem trabalha, com as limitações das ciências econômicas, mostra-se oportuno recordar a genialidade do cancioneiro popular que captou o significado do trabalho como algo mais do que sagrado. A definição supera em graça e sabedoria os conchavos e oportunismos reformistas.
Fonte: Caros Amigos