A deturpação do sentido da linguagem econômica ajuda a impor atrocidades à sociedade, alerta Hudson
Uma das características da economia atual é o uso de uma lógica superficialmente plausível para afastar a discussão da substância real, adverte o economista Michael Hudson, pesquisador e professor emérito da Universidade do Missouri, nos Estados Unidos, e da Universidade de Pequim, na China.
Isso é feito, por exemplo, refinando-se a demagogia de que impostos baixos para os privilegiados são benéficos para o resto da sociedade. “O objetivo é compor uma história verossímil para convencer a população, especialmente as classes mais baixas, a identificar seu bem-estar com o da oligarquia, a acreditar que só aquele 1% mais rico pode salvá-los, oferecer-lhes empregos e financiamentos”, ensina Hudson.
Para desvendar os absurdos e as fraudes intelectuais escondidas na terminologia própria da economia, ele publicou neste ano o livro J Is For Junk Economics: A Guide to Reality In an Age of Deception, em que procura demonstrar “como um vocabulário orwelliano domina a mídia, o ensino da economia e até mesmo a representação estatística do seu funcionamento”.
Tudo se passa, diz, como se não houvesse exploração, quase nenhuma renda da propriedade e de investimentos nem ganhos de capital derivados da inflação dos preços dos ativos, apesar de estes serem o principal objetivo dos investidores imobiliários e financeiros.
A seguir, uma seleção feita por CartaCapital de verbetes do capítulo intitulado “Os 22 mitos econômicos mais prejudiciais do nosso tempo”, desvendados pelo autor.
Mito: O setor público é um peso morto e a atividade do governo é uma despesa extra desnecessária. A conclusão é de que os gastos públicos devem ser minimizados.
Realidade: O investimento em infraestrutura pública é um fator de produção. Seu papel é reduzir o custo de vida e facilitar os negócios, fornecendo serviços de transporte, comunicações e cuidados com a saúde, entre outros, a preço de custo, de forma subsidiada ou livremente. O investimento público em tais monopólios naturais os mantém fora das mãos de privatizadores, rentistas e financistas.
Mito: Os ganhos de capital não são receitas e, portanto, não devem estar sujeitos a Imposto de Renda ou contribuições para financiar a Previdência Social.
Realidade: Os administradores de investimentos definem os retornos totais como a renda corrente mais os ganhos de preço dos ativos. Esses ganhos são o principal objetivo dos investidores dos setores de finanças, seguros e imóveis.
No entanto, em nenhum lugar das contas nacionais ou nas estatísticas do balanço patrimonial do Banco Central há uma medida de ganhos de preços de ativos para terrenos, ações e outros títulos financeiros.
No que diz respeito às estatísticas oficiais, o princípio orientador parece ser o de que aquilo que não é visto, não será tributado ou regulamentado. O imposto sobre a renda nos Estados Unidos em 1913, por exemplo, aplicou as mesmas taxas para os ganhos de capital e os rendimentos, a partir da suposição de que o efeito seria o mesmo: um aumento de riqueza e “poupança”.
Ao contrário dos salários e dos lucros, os ganhos de preços de ativos não resultam tanto do esforço próprio dos seus donos. É o caso dos ganhos a partir de: 1. Investimento em infraestrutura pública, aumentando o valor dos imóveis do entorno.
2. Aumento da demanda do mercado para habitação e de estoques a partir de uma maior prosperidade nacional.
3. Políticas de crédito fácil estabelecidas pelo Banco Central (quantitative easing, ou aumento do volume de dinheiro no mercado, provocado com a compra intensiva de títulos públicos pelo BC) para baixar as taxas de juro e aumentar os preços dos títulos.
Essas maneiras de enriquecer são tributadas com impostos mais baixos em comparação àqueles incidentes sobre os salários e os lucros industriais obtidos com a formação de capital tangível.
Foi isso que fez do 1% mais abastado da sociedade uma classe principalmente rentista, enriquecida com o subsídio público e beneficiando-se ainda de impostos baixos sobre os ganhos obtidos a partir da propriedade e os retornos financeiros da alavancagem da dívida.
Mito: A privatização é mais eficiente do que a propriedade e a gestão públicas.
Realidade: O investimento público em infraestrutura tem sido a principal categoria de formação de capital desde tempos imemoriais. Em vez de buscar lucro com esse investimento, os governos visam subsidiar os preços cobrados pelos serviços básicos de infraestrutura, de modo a tornar a economia mais competitiva.
O objetivo não é, entretanto, ajudar o setor privado a obter lucros, mas a funcionar de forma mais rentável. Os monopólios mais cruciais são aqueles que os governos mantiveram por muito tempo sob domínio público: estradas e outros transportes básicos, correios e comunicações, pesquisa e desenvolvimento, saúde pública e educação.
A privatização gera juros e outras taxas de propriedade para os rentistas, salários e bônus para executivos, ao mesmo tempo que oferece oportunidades de obtenção de aluguéis extorsivos. Usar esses setores como oportunidades para extrair renda, juros e taxas é o sonho das cleptocracias financeiras.
O objetivo é obter ganhos de capital, com políticas tributárias que revertem as reformas progressistas. O fornecimento e o preço dos transportes, das comunicações, da água e da saúde pública são em grande parte responsáveis pelas diferenças de custos internacionais.
No entanto, em nenhuma parte da teoria do comércio de “mercado livre” esse papel do investimento público é levado em conta nos índices de custo comparativos ou nas análises de custo absoluto. As contas nacionais não creditam a formação de capital (infraestrutura pública) pelo governo como um ativo, em contrapartida aos gastos, no cálculo de déficits ou excedentes orçamentários.
Mito: Os déficits do governo são ruins, os orçamentos equilibrados são bons e os superavitários, ainda melhores.
Realidade: Quando os governos geram déficits (exceto para salvar bancos e pagar detentores de títulos públicos), eles colocam dinheiro na economia. Mas, se eles executam um orçamento equilibrado (ou, pior ainda, um orçamento superavitário), isso retira receitas da economia.
Foi o que ocorreu quando o ex-presidente Andrew Jackson, dos Estados Unidos, executou superávits orçamentários deflacionários na década de 1830, depois de fechar o Banco dos Estados Unidos. Aconteceu novamente após a Guerra Civil, quando os EUA procuraram reverter os preços para os níveis anteriores a 1860, causando depressão prolongada.
Os apelos para os governos manterem orçamentos equilibrados emanam do movimento do setor bancário para substituir os tesouros nacionais como fonte de dinheiro e crédito.
Quando o presidente Bill Clinton gerou um superávit orçamentário no final de sua administração, no fim da década de 1990, isso obrigou a economia americana a confiar em bancos comerciais para fornecer o crédito necessário para crescer.
Ao contrário dos gastos do governo, que podem ser autofinanciados, os bancos cobram juros e taxas pela criação de crédito – e criam crédito principalmente para aumentar os preços de ativos, não para estimular o emprego e a formação de capital tangível.
Mito: Os cortes nas despesas públicas colocam o Orçamento do governo em equilíbrio, restaurando a estabilidade.
Realidade: Ao contrário das dívidas do setor privado, as do governo não podem ser objeto de baixa contábil. Os empréstimos do Fundo Monetário Internacional aos governos, para resgatar os detentores de títulos privados (principalmente os bancos e o 1% mais rico), deixam inexoravelmente um resíduo de pressões e exigências do Fundo sobre os governos.
As condicionalidades impostas – reduções nas despesas públicas, da previdência e aumento dos impostos sobre o trabalho – aprofundam o déficit orçamentário. Isso leva o organismo e os ministros das Finanças a pressionar por uma austeridade ainda mais severa, como se o seu “remédio” não fizesse sangrar e não enfraquecesse a vítima endividada.
A espiral descendente resultante é o objetivo real da austeridade, porque o agravamento da crise financeira de um governo força privatizações. Isso é especialmente claro na conquista financeira da Grécia desde 2010.
Mito: O critério da ciência econômica é demonstrar que as economias tendem à estabilidade e a uma distribuição cada vez mais justa e equitativa de renda e da riqueza. Modelos de polarização ou atrofia não têm uma resolução matemática simples, portanto, não se enquadram na definição de ciência econômica propriamente dita.
Realidade: Os setores financeiro e imobiliário buscam controlar os conteúdos do ensino e os meios de comunicação para desencorajar reformas que retardariam a sua busca da monopolização da riqueza e do poder político.
Esse controle é realizado por meio da alteração do significado do vocabulário econômico e da eliminação do estudo da história econômica. O antídoto para a economia-lixo ensinada após essas modificações precisa, entretanto, explicar por que as economias tendem a se tornar mais instáveis e mais polarizadas como resultado de sua própria dinâmica interna e, acima de tudo, a sua dinâmica do crédito e da dívida e a não tributação da renda do investimento.
Fonte: Carta Capital