Quando os Poderes se estranham, como ocorre hoje no Brasil, quem morre é o sistema democrático
Há um mal-estar nas sociedades, desde as mais prósperas e integradas à economia mundial até as mais pobres e dela desintegradas. É visível a dificuldade de adaptação de todas elas às circunstâncias concretas vigentes. Esse mal-estar estressa o indivíduo.
Leva-o ao pessimismo e este à propensão para aceitar aventuras propostas por demagogos “populistas”, que prometem à sociedade o conforto de uma piscina aquecida. Ao mergulhar nela, o estressado “quebra a cara”, porque ela está vazia!
Essa situação pode ser empiricamente apreciada no recente levantamento do Pew Research Center, realizado entre 16 fevereiro e 28 de abril deste ano, que ouviu 34.788 cidadãos em 32 países (excluída a China). À pergunta aberta “A atual situação econômica de seu país está pior ou melhor?”, as respostas variaram muito, como se vê na tabela abaixo.
A resposta revela um sentimento íntimo que deve ser muito influenciado pela coincidência ou não da preferência do cidadão pelo partido que determina a política social e econômica. A correlação entre “pior” ou “melhor” e a qualidade do regime democrático é praticamente nula.
Isso sugere duas mudanças possíveis no futuro próximo: 1. Um aperfeiçoamento dos regimes eleitorais naqueles países onde a convicção de que a democracia, com o poder incumbente eleito em prazo certo e pelo sufrágio universal honesto, é o melhor. 2. Uma tentação autoritária que pode ocorrer depois de um desastre eleitoral, em que – inadvertidamente – se entrega o poder a um demagogo oportunista bem servido de uma retórica convincente.
A tabela sugere três exemplos: a. Turquia – situação apoiada por ampla maioria a um governo que enfrentou (ou inventou) um “golpe” para justificar o seu “contragolpe”, que concentrou todo o poder no Executivo, eliminando a independência do Poder Judiciário, a liberdade de opinião, de ensino e a independência da “mídia”. Tudo se encaminha para um regime autoritário.
b. França – situação inversa. Depois de anos de experiência com governos com tinturas ideológicas diferentes, mas incapazes de retornar a um crescimento seguro, o “falso socialismo” com François Hollande não teve sequer condições de propor a sua reeleição.
Um sentimento de repulsa e indignação, capturado por uma figura carismática, enterrou os partidos tradicionais e surpreendeu o mundo, revelando a energia desconhecida que se esconde numa sociedade democrática esclarecida.
Respondendo às dificuldades e estimulada por Emmanuel Macron, a velha França apresenta-se como candidata a mostrar ao mundo que, mesmo com uma soma de fracassos de sucessivos e ideologicamente diferentes governos incumbentes, a insistência na democracia acaba encontrando a energia necessária para uma experiência verdadeiramente revolucionária. Tem boa probabilidade de dar certo, se tiver paciência para enfrentar a “esquerda” mais reacionária do mundo.
c. Polônia – a nação que, com uma organização política autêntica, o sindicato Solidariedade, sob o comando de um líder carismático e apoio moral do Ocidente, enfrentou a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (cansada e desiludida do socialismo “real”), quebrando um dos pés do “capitalismo de Estado” que em meio século não gerou nem liberdade, nem igualdade, nem eficiência produtiva.
Sofre hoje uma redução do crescimento e o partido que controla o governo (Lei e Justiça) enfrenta uma oposição dividida. Dá sinais estranhos de um desarranjo interno entre o Executivo e o Legislativo: uma lei recentemente aprovada permitirá ao primeiro substituir todos os juízes da sua Corte Suprema, o que é um péssimo sinal para a democracia. O mesmo está ocorrendo na Hungria.
A tabela mostra que o Brasil é o país onde é maior a separação entre os que esperam melhora e os desiludidos. Isso, provavelmente, se explica pela clara separação entre o poder incumbente e o que ele tem de fazer para superar a tragédia deixada pelo exagerado voluntarismo do governo anterior.
A história mostra que há múltiplas saídas para esse problema, mas a pior delas é exemplificada pela Turquia e pela Polônia. Quando os Poderes se estranham, como ocorre hoje entre nós, quem morre é a democracia.
Fonte: Carta Capital