O governo parece desprezar os números e desdenhar o sofrimento dos cidadãos de carne e osso lançados no desespero
À exceção dos peralvilhos que se esfregam nas saturnálias celebradas entre Brasília e os “mercados”, é de conhecimento geral que o desemprego foi obra das teorias e práticas do ajuste que desajusta. Entre o chão da fábrica, passando pelos balcões das lojas, até chegar aos escritórios refrigerados, estão todos à mercê da lâmina afiada que vem cortando, sem dó nem piedade, os postos de trabalho e as esperanças.
O governo porta-se em relação ao problema de maneira olímpica. Parece desprezar os números e desdenhar do sofrimento dos cidadãos de carne e osso, lançados no torvelinho da insegurança e do desespero. “Não há o que fazer”, repetem a toda hora o presidente e seus ministros, prometendo que os empregos vão brotar do chão, como cogumelos, quanto a economia estiver “ajustada” (sic).
Esta é a ilusão que os espertalhões da finança pretendem vender aos tolos domesticados pela mídia. No ano da graça de 2017, a ausência de lideranças empresarias, a miopia dos ditos formadores de opinião e a passividade do governo se associam para transformar a economia num espectro do que foi no passado.
A decadência não é percebida pelos propagandistas das reformas trabalhista e previdenciária, apresentadas como a salvação da lavoura. É, sem dúvida, necessário discutir amplamente as reformas em um ambiente global de profundas transformações demográficas, tecnológicas e nos mercados de trabalho. Mas seria prudente impedir o avanço da destruição da base industrial da economia brasileira.
A indústria eletroeletrônica praticamente não existe mais. O ex-complexo eletroeletrônico, com sua miríade de produtores de peças e componentes, está praticamente reduzido à montagem de aparelhos com peças e componentes importados, à semelhança da indústria automobilística. O miolo da indústria vai sendo roído, sob o olhar complacente e míope dos governantes de turno. Não é surpresa que os empregos tenham o mesmo destino.
Estamos criando empregos em outros países e promovendo uma desestruturação das cadeias de produção. Imagine o leitor que a empresa localizada no Brasil, nos casos mais extremos, limita-se a apertar alguns parafusos e colocar a etiqueta para designar a marca do produto. Podemos estar falando de um iPad, de um smartphone ou de um aparelho de televisão de tela plana.
A experiência internacional, sobretudo a dos países asiáticos, parece demonstrar a existência de interações virtuosas entre o investimento em infraestrutura, expansão industrial, emprego e crescimento. Esses países executaram programas de export led growth com câmbio competitivo, fortes incentivos e duras exigências de desempenho impostas pelo Estado (intervencionismo!) para estimular o investimento privado.
A conjugação entre os esforços do setor público e do setor privado organizado sob forma de grandes empresas permitiu durante muitas décadas a manutenção de taxas agregadas de investimento e de crescimento econômico extremamente elevadas.
Na China, as elevadas taxas de poupança resultam, sobretudo, dos lucros retidos pelas empresas que brotam do circuito virtuoso: expansão do crédito – investimento – aumento da produtividade e das exportações líquidas – elevação dos lucros – liquidação de dívidas.
As condições atuais da economia mundial provavelmente não permitirão o surgimento de novas experiências de crescimento puxado pelas exportações, o que não significa o abandono dos projetos voltados para uma maior participação do Brasil nas cadeias globais de formação de valor. Essa integração às cadeias globais vai, certamente, exigir políticas comerciais distintas daquelas executadas nos anos do nacional-desenvolvimentismo.
A ênfase, agora, deve ser colocada na busca de construção de nichos que acentuem nossas vantagens dinâmicas apoiadas em programas de inovação. Exemplos: estender a outros setores a experiência do bem-sucedido arranjo Embrapa–agronegócio, valorizar o sucesso da Petrobras na exploração em águas profundas e estimular a pesquisa e o desenvolvimento nas novas fontes de energia renovável.
A retomada do crescimento, no entanto, vai depender da capacidade do Estado brasileiro de recuperar sua função de coordenador das decisões privadas mediante a elevação substancial do investimento público em infraestrutura, com o devido cuidado para garantir a difusão dos efeitos pelos diversos setores industriais que produzem e dão empregos no País.
Fonte: Carta Capital