Doenças e óbitos crescem mais onde é maior o ataque às redes de proteção social dos indivíduos mais frágeis.
O total de desempregados subiu para 14,3 milhões no Brasil em março, um recorde histórico segundo o IBGE, e atingirá 201 milhões no mundo este ano, prevê a Organização Internacional do Trabalho.
Aqui e no exterior ainda predominam, entretanto, as mesmas políticas recessivas e de austeridade causadoras das demissões em massa, ou soluções incapazes de reverter a situação, constatam vários economistas.
Como se isso não bastasse, a discussão sobre as causas da crise e as opções para superá-la ocorrem quase exclusivamente na esfera econômica. Uma diferença fundamental deve ser destacada: a Europa mantém, apesar dos ataques, o Estado de Bem-Estar Social, uma conquista inimaginável no Brasil em regressão.
Esse enfoque restrito é equivocado, criticam David Stuckler, especialista em economia da saúde e pesquisador da Universidade de Oxford, na Inglaterra, e Sanjay Basu, professor de medicina e epidemiologista da Universidade de Stanford, nos Estados Unidos.
“A discussão em torno da Grande Recessão iniciada em 2008 centrou-se demais na diminuição do PIB, nos déficits e na redução da dívida e pouquíssimo na saúde e no bem-estar das pessoas”, acusam os especialistas no livro The Body Economic, focado nas decisões tomadas pelos governos e nas respectivas repercussões para as economias e a integridade física dos cidadãos.
Segundo os autores, o aumento dos índices de depressão, suicídio, alcoolismo, epidemias, doenças infecciosas e problemas sanitários é considerado inevitável nas recessões.
Não é bem isso, dizem, e apontam o exemplo da Suécia, que sofreu uma crise econômica grave no início de 1990, pior do que a Grande Recessão, mas não experimentou uma elevação do número de suicídios ou mortes.
Na Noruega, Canadá e até em parte da população dos EUA, houve melhora nos indicadores de saúde. O Japão da “década perdida” exibe hoje índices entre os melhores do mundo.
O perigo real para a saúde pública não é a própria recessão, mas os cortes radicais de gastos públicos, exatamente por destruírem a rede de proteção social dos cidadãos fragilizados pelos colapsos da economia. “As recessões podem causar danos, mas a austeridade mata”, disparam Stuckler e Basu.
A Islândia, abalada pela pior crise bancária da história, não teve um aumento no número de mortes durante a Grande Recessão porque conservou e reforçou seus programas de bem-estar social. A Grécia sofreu fortes pressões do FMI, da Comissão Europeia e do Banco Central Europeu para aplicar cortes draconianos de gastos, os maiores na Europa desde a Segunda Guerra Mundial.
Antes de 2008, o país tinha a menor taxa de suicídios da Europa. Só em 2012, mais de 600 cidadãos gregos se mataram, entre eles o farmacêutico aposentado Dimitris Christoulas, aos 77 anos.
Sua pensão, reduzida de modo drástico pelo governo, só cobria os gastos com a própria medicação. “Não estou me suicidando. Estão me matando. Estou convencido de que os jovens sem futuro algum dia empunharão armas e fuzilarão os traidores deste país na Praça Syntagma (em Atenas)”, dizia o bilhete deixado por Christoulas.
Uma escalada de destruição da rede de proteção social da parcela mais vulnerável da população é o que se vê também no Brasil, desde o ajuste fiscal de 2015, do ministro Joaquim Levy, sob o governo de Dilma Rousseff, até o pouco mais de um ano da desastrosa gestão de Michel Temer.
A redução do seguro-desemprego, a diminuição dos recursos para habitação popular e saúde, o ataque à Previdência Social e à legislação trabalhista, ao lado da privatização e desnacionalização desenfreadas, por certo comprometerão o futuro de gerações.
A invasão, na terça-feira 20, da Câmara Municipal de Curitiba por funcionários públicos contrários ao pacote de austeridade encaminhado pelo prefeito Rafael Greca foi uma das várias iniciativas contra os desmandos, em diversos estados e municípios em situação de calamidade, devido ao ajuste fiscal generalizado.
Muda o país, mas a austeridade é a mesma, mostra o exemplo a seguir. Em dezembro, o governo Temer cancelou 1,12 milhão de benefícios do Bolsa Família, sob a alegação da necessidade de aumentar a fiscalização por suposta falta de transparência e manipulação do programa, embora houvesse auditoria regular desde 2009, com exclusões sistemáticas de indivíduos sem direito ao abono.
Dois anos antes, o primeiro-ministro do Reino Unido, David Cameron, disse que centenas de milhares de cidadãos ludibriavam o sistema estatal de auxílio aos inválidos. O Ministério do Trabalho e Pensões discordou e informou que menos de 1% dos fundos, o equivalente a 2 milhões de libras, iam parar em mãos erradas.
Cameron manteve o corte e contratou por 400 milhões de libras a empresa francesa Atos para fazer avaliações médicas dos pensionistas.
Na Grande Depressão dos anos 1930 nos Estados Unidos, as medidas do New Deal do presidente Franklin Delano Roosevelt, para geração de empregos e reforço da rede de proteção social, tiveram efeito positivo comprovado na saúde da população.
Cada 100 dólares de gastos por habitante resultaram, em média, em uma diminuição de, aproximadamente, 18 mortes por pneumonia a cada 100 mil habitantes, resultado expressivo numa época sem medicamentos eficazes contra a doença. Possibilitaram também a redução da mortalidade infantil em 18 óbitos para cada 1 mil nascidos vivos.
O New Deal está associado ainda a uma queda do número de suicídios: “Utilizando modelos estatísticos rigorosos que descartam as explicações alternativas, descobrimos que cada 100 dólares de gastos adicionais do programa por pessoa levaram a uma diminuição significativa de 4 suicídios por 100 mil habitantes”, sublinham Stuckler e Basu. A situação atual é oposta, com 4.750 casos acima do patamar anterior a 2008.
A Suécia e a Finlândia, dizem os pesquisadores, têm programas para obtenção de empregos e proteção da saúde mental e por isso as demissões em massa não foram acompanhadas de aumento de suicídios nas várias recessões ocorridas durante os anos 1980 e 1990.
Segundo a ONU, o Brasil, apesar das taxas de suicídio relativamente baixas na comparação internacional, é o oitavo país com maior número de ocorrências no mundo, em números absolutos.
No Reino Unido, o uso de antidepressivos aumentou 22% entre 2007 e 2009. Uma pesquisa em 2010 descobriu que 7% daqueles que procuram ajuda para “estresse relacionado ao trabalho” iniciaram tratamento farmacológico.
Os médicos emitiram 3,13 milhões de prescrições adicionais contra a depressão em 2010 em relação a dois anos antes. Em consequência da austeridade, mais pessoas passaram a viver nas ruas de Londres e as taxas de tuberculose deram um salto para 279 casos em 2011, uma variação de 8% em relação ao ano anterior.
Com o aumento do número de moradores de rua também na Grécia e em outros países, pioraram os indicadores de consumo de drogas, doenças sexualmente transmissíveis, estupros e espancamentos.
Uma tragédia crônica na São Paulo da Cracolândia, entre outras cidades brasileiras, onde o número de moradores de rua cresce seis vezes mais rápido que o conjunto da população e dobrou nos últimos 15 anos, segundo pesquisa da Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas.
Entre 2007 e 2009, o número de pessoas que tomaram antidepressivos diários aumentou 17% na Espanha. A quantidade de pacientes com sintomas clínicos de depressão profunda passou de 29% para 48% entre 2006 e 2010.
Os demais casos saíram de 6% para cerca de 9% do total, os relatórios de ataques de pânico subiram de 10% para 16% e o abuso na ingestão de álcool cresceu de menos de 1% para 6% no mesmo período.
Segundo divulgou a Organização Mundial da Saúde em fevereiro, a depressão afeta 4,4% da população mundial e 5,8% dos brasileiros. O nosso país tem a maior proporção de casos de ansiedade no planeta, de 9,3%.
Nos Estados Unidos, 10% da população adulta tomou antidepressivos durante a Recessão. Em média, cada 100 execuções adicionais de hipotecas, no colapso do mercado imobiliário desencadeador da crise, corresponderam a um aumento de 7,2% na procura de atendimento de emergência e de internações por hipertensão arterial.
Resultaram também em um salto de 8,1% nas complicações relacionadas ao diabetes, principalmente entre indivíduos com menos de 50 anos. Entre 2007 e 2009, os serviços de emergência atenderam 6 milhões de pessoas além do total habitual registrado em período equivalente anterior à derrocada da economia.
O número de crianças sem casa passou de 1,2 milhão em 2007 para cerca de 1,6 milhão em 2010, ou cerca de uma em cada 45.
O governo da Finlândia, em vez de cortar os orçamentos para construção de moradias, implantou, em 2008, uma política habitacional para reduzir a população sem-teto entre 2009 e 2011, período em que a quantidade de desabrigados aumentou no Reino Unido, Irlanda, Grécia, Espanha e Portugal.
As decisões quanto à condução da economia, concluem Stuckler e Basu, não envolvem só taxas de crescimento e déficits orçamentários, mas são também uma questão de vida ou morte.
“Se fosse necessário demonstrar que as políticas econômicas são ‘seguras e eficazes’ assim como se faz para aprovar o uso de medicamentos, teríamos sociedades mais seguras e saudáveis. Ocorre o contrário: a austeridade submete países a um experimento gigante com a saúde humana, e tudo o que podemos fazer é contar os mortos. Essas vidas não voltarão, entretanto, quando as bolsas de valores se recuperarem.”
Fonte: Carta Capital