Advogada popular reflete sobre violência e papel do Judiciário no Brasil.
Quem lê, ouve ou assiste aos noticiários tem a impressão de que as notícias de crime e violência ganharam mais espaço. Comentaristas e telespectadores ficam a torcer contra o “bandido” e a pedir mais “punição”. Temos visto mais assassinatos violentos, normalmente de jovens, mulheres, homossexuais, pretos e pobres. A repercussão quando morre alguém branco e rico assassinado é uma, quando é preto e pobre é bem outra. Para conversar sobre o papel do sistema judiciário brasileiro nesse contexto, o Brasil de Fato MG entrevistou Giane Ambrósio Alvares que é advogada, mestre em Processo Penal pela PUC/SP e integrante da Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares.
Brasil de Fato – A morte do jovem João Victor, em São Paulo, infelizmente não parece ter sido uma exceção. Como os sistemas policial e judiciário costumam funcionar nessas situações?
Giane Alvares – A morte do menino João Victor Souza de Carvalho, agredido e arrastado pela rua por funcionários rede Habib’s de fast-food, como afirmado por testemunhas e atestado por imagens divulgadas pela imprensa, realmente não é uma exceção. A vida dos jovens, negros e pobres no Brasil parece não valet nada. Nas periferias do país, é comum o assassinato da juventude por parte das forças de segurança e, agora, também já se tornou bastante comum no Brasil episódios de linchamento de meninos negros e pobres acusados da prática de delitos.
O caso do menino João Victor revela-se particularmente assustador. Tratava-se de um garoto pobre, que tinha por costume pedir dinheiro na porta da lanchonete localizada no Bairro da Vila Nova Cachoeirinha, na periferia de São Paulo.
Na tarde do dia 26 de fevereiro, segundo o relato da testemunha Silvia Helena Croti, o menino estava, como de costume, pedindo dinheiro em frente à lanchonete. Em razão disso, foi perseguido, agredido e arrastado já inconsciente pela rua, vindo a morrer logo em seguida. A versão apresentada inicialmente por funcionários da rede de fast-food negava a ocorrência das agressões.
Ainda no local dos fatos, policiais militares teriam dito à testemunha Silvia Helena Croti que o depoimento dela não tinha nenhuma valia por tratar-se de uma usuária de drogas. Uma “noia”, nas palavras da polícia militar.
“Programas televisivos disseminam sentimentos vingativos”
Prontamente todos os meios de comunicação convencionais aderiram à versão apresentada por funcionários do estabelecimento comercial. Prontamente foi produzido um laudo pelo Instituto Médico Legal, atestando que no corpo do menino foram localizados vestígios de substâncias utilizadas em drogas como lança-perfume e cocaína.
Como sempre, procura-se rapidamente transferir para a vítima a responsabilidade pelas agressões sofridas e, neste caso, pela própria morte. Evidentemente o laudo precisa ser contestado e as responsabilidades penais e cíveis dos funcionários e da empresa devem ser perseguidas pelo Estado brasileiro e pela família.
Um menino de 13 anos, ainda que sob efeito desse tipo de substâncias, ao invés de ser perseguido, agredido e arrastado pelas ruas, deveria receber proteção especial da sociedade e do Estado.
Nenhum traço de droga encontrado no corpo de João Victor justifica a violência que os dois funcionários do Habib’s cometeram contra ele.
Como destacado pelo estudante de direito Marco Aurélio Barreto Lima em artigo publicado no site Justificando, assim como João Victor, há dez anos o menino João Hélio morria de forma brutal e violenta, mas no primeiro caso não houve comoção e os agentes estatais responsáveis pelas investigações não agiram com a presteza que o episódio exigia. A diferença entre os dois casos: João Victor era pobre, João Hélio rico.
Vale dizer, ainda, que quando se trata de cumprir o projeto de encarceramento em massa dos jovens negros do Brasil, nos processos contra acusados da prática de delitos da lei de drogas, em 74% dos casos as únicas testemunhas existentes são os policiais que participaram da prisão e, em 91% destes processos, o desfecho é condenatório.
Alguém consegue imaginar o desfecho que teria um caso em que a vítima, no lugar de um menino negro, pobre da periferia, como no caso de João Victor, fosse um menino branco, rico ou de classe média? Basta fazer esse exercício de imaginação para compreender as profundas contradições que perpassam o Estado e a sociedade brasileira.
Depois do golpe no Brasil, na sua avaliação, aumentou a violência contra as pessoas mais vulneráveis, como os pobres, negros e mulheres?
Os governos anteriores, da presidente Dilma Rousseff e Lula, eram mais sensíveis às causas e reivindicações dos grupos mais vulneráveis, como LGBT e mulheres, mas não se mostrou muito atento ou eficaz no combate à violência e ao encarceramento em massa da população negra e pobre no país.
O governo atual, marcado por um perfil conservador e atrasado, tem como única preocupação dilapidar o patrimônio nacional e atender aos anseios das elites nacionais e estrangeiras, retirando direitos dos trabalhadores. As demandas dos pobres, negros, mulheres, LGBT, etc, não são uma pauta para este governo. O caso do assassinato brutal da transexual Dandara Kataryne, em 15 de fevereiro, no Ceará, é um exemplo emblemático de como a violência é uma constante no Brasil contra lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, travestis e transgêneros
Estudos mostram que quanto mais se implementa o Estado mínimo, restringindo direitos sociais, trabalhistas, previdenciários, etc, como vem acontecendo no Brasil, maior e mais violento é o projeto de encarceramento de pobres.
De acordo com pesquisa divulgada pelo Departamento Penitenciário Nacional (Depen), em dezembro de 2014 o Brasil possuía a assombrosa população carcerária de 622 mil pessoas, constituída por 61,67% de negros, 74% de indivíduos com idade entre 18 e 34 anos e por 75,08% de detentos que nunca frequentaram a escola ou que frequentaram apenas o ensino fundamental.
“Menos direitos sociais e trabalhistas gera mais violência”
É exatamente essa parcela da população que tem sido vítima da carnificina que está ocorrendo nos presídios brasileiros e que, cotidianamente, nas periferias e no interior do país, não somente se vê privada de direitos fundamentais básicos, como trabalho, educação, saúde, terra e moradia, como também sofre com a violência praticada pelas mãos das forças de segurança do Estado, destacando-se o extermínio da juventude negra.
Numa perfeita definição de Marcio Sotelo Felippe, vivemos no país um “estado de guerra contra os excluídos” e, “sob a complacência histórica e generalizada da sociedade”, a prisão injusta, o assassinato, a tortura e a barbárie, dentro e fora dos presídios, estão simbolicamente autorizados.
De outro lado, se é verdade que nenhum direito fundamental foi reconhecido ou efetivado sem a luta, o sacrifício e o sofrimento dos povos, também se pode afirmar que a resposta estatal para as lutas protagonizadas por movimentos populares e pela dissidência política, em grande parte das vezes, restringe-se à repressão penal.
É assim que, com aquele mesmo objetivo de manter os privilégios das classes dominantes, o sistema de justiça criminal também tem a missão de servir de instrumento para amedrontar, desmobilizar e neutralizar as lutas realizadas em prol do cumprimento das promessas constitucionais.
O Judiciário tem sido um ator muito importante na política brasileira. Mas há muitas críticas a determinadas posturas, como julgamentos sem provas e ataques à presunção de inocência. Quais são os riscos para a Justiça brasileira dessa atuação de setores do Judiciário, no STF, em alguns tribunais, etc?
Nos últimos anos, mudanças de entendimento jurisprudencial a respeito de direitos fundamentais relacionados à atividade punitiva estatal e a aprovação de novas leis penais e processuais pelo Congresso Nacional abriram um ciclo mais grave de autoritarismo penal no país, direcionado aos pobres, aos movimentos populares e, também, a determinados partidos políticos.
A criminalização da pobreza e dos movimentos populares são fenômenos cuja existência nem mesmo um observador menos atento pode deixar de notar como marca de nossa realidade nessa quadra da história.
“Seletividade da justiça atinge partidos específicos”
A aterrorizante situação das prisões brasileiras, a recente prisão de Guilherme Boulos, liderança de movimento popular (MTST) que luta pela concretização do direito fundamental à moradia, e a prisão de trabalhadores ligados ao Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) em Goiás, Paraná, Bahia e Tocantins, são fatos representativos desta realidade e demonstram que, no país, a missão essencial do sistema de justiça criminal é a de servir como instrumento de contenção das classes desfavorecidas e das lutas sociais.
Se é verdade que nenhum direito fundamental foi reconhecido ou efetivado sem a luta, o sacrifício e o sofrimento dos povos, também se pode afirmar que a resposta estatal para as lutas protagonizadas por movimentos populares restringe-se à repressão penal.
Parece haver um sentimento de ‘justiçamento’ e ‘vingança’ aguçado na sociedade. Muitas vezes se comemora a prisão de políticos corruptos mesmo que não sejam cumpridos os ritos da lei. Essas prisões são a solução para o problema da corrupção e mesmo da impunidade no Brasil?
O alardeado problema da impunidade no Brasil é uma grande falácia. Com mais de 600 mil pessoas presas, não se pode afirmar que exista impunidade no país. No máximo, o que pode haver é o encarceramento seletivo de determinada classe social.
Já faz bastante tempo que no Brasil programas televisivos disseminam na sociedade os sentimentos de necessidade de combater a prática de qualquer crime a qualquer custo. Assassinatos cometidos por policiais e outras tantas ilegalidades são comemorados nestes programas.
Ocorre que, a partir do julgamento da Ação Penal 470 (vulgo “mensalão”) pelo Supremo Tribunal Federal, a seletividade do sistema penal, que antes apontava sua mira apenas para pobres e negros, passou a direcionar-se também contra membros de determinados partidos políticos. No julgamento da Ação Penal 470, um dos ministros integrantes do STF chegou a dizer a seguinte frase: “não tenho provas, mas a literatura jurídica me permite condenar”.
Então, se você diz que não há provas, você está dizendo que não um corrupto, e sim uma pessoa sendo condenada injustamente.
“Prisões nunca foram a solução para a criminalidade”
A partir do julgamento da Ação Penal 470, a mídia conservadora em geral passou a tratar os aludidos casos de corrupção da mesma forma: não há críticas à seletividade ou ao constante desrespeito aos direitos fundamentais previstos na Constituição de 1988 e clama-se não por justiça, mas por justiçamento.
Os retrocessos protagonizados pelo Judiciário são fartos e evidentes.
Para citar apenas dois dentre os diversos julgamentos escandalosos proferidos pelo Supremo Tribunal Federal recentemente, observa-se que o suposto guardião da Constituição, ao determinar a obrigatoriedade imediata do corte de salário dos funcionários públicos em greve, golpeou mortalmente um dos mais importantes direitos dos trabalhadores. Noutro passo, ao autorizar a prisão automática em decorrência de condenação criminal em segundo grau de jurisdição, fulminou o princípio da presunção de inocência, uma garantia universal dos acusados em face das arbitrariedades do Estado.
Sob o manto do sacrossanto discurso da necessidade de combate à corrupção a qualquer custo, com a adoção de medidas em total desrespeito a princípios constitucionais básicos de direito penal e processo penal, no âmbito das investigações e do processo da denominada Operação Lava Jato, incontáveis ações arbitrárias foram realizadas e forneceram uma parte fundamental do arsenal de argumentos falaciosos que respaldaram a destituição de Dilma Rousseff do poder.
Para perplexidade de quem ainda nutria expectativas quanto à validade dos preceitos do Estado Democrático de Direito no país, num passo sincronizado com a agenda política do golpe, chegamos ao ápice de ver divulgado o conteúdo de grampos ilegais de conversas telefônicas da Presidência da República.
Com forte viés populista, enquanto os desmandos da Operação Lava Jato seguem sendo exaustivamente divulgados e conquistam corações e mentes dos mais desavisados, as forças de segurança atuam nas sombras da democracia de modo cada vez mais coeso, fazendo da truculência a arma utilizada contra manifestações populares que denunciam a ilegitimidade do governo e exigem a manutenção e eficácia dos direitos conquistados a custa de muita luta e sofrimento do povo brasileiro.
Esse tipo de desrespeito ao Estado Democrático de Direito praticado pelo judiciário é muito nocivo para a sociedade e representam um grave retrocesso.
Por fim, vale dizer que prisões, mesmo que fundadas em provas concretas da prática do crime, nunca foram a solução para a criminalidade e o combate à corrupção de modo seletivo, em desrespeito aos direitos fundamentais e apenas na esfera penal, como bem apontou Marcelo Semer, só pode gerar mais corrupção.
Fonte: Brasil de Fato