PEC 241 e a entrega irrestrita ao neoliberalismo

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O País em leilão com a promessa do Estado mínimo.

No último mês, Cristina (o nome é fictício, mas a cidadã é de carne e osso) recebeu uma carta do Ministério do Desenvolvimento Social e Agrário. Ela tem direito ao Benefício de Prestação Continuada (BPC), no valor de um salário mínimo.

A razão é um filho, de 22 anos, que desenvolveu microcefalia durante a gestação e tem dificuldades motoras e cognitivas, devido a patologias no cérebro, como a displasia cortical e uma anomalia que impede a migração neuronal.

De acordo com a correspondência, Cristina terá de passar por um novo processo de averiguação de seu benefício. Seis anos após conseguir o auxílio, ela tem de apresentar novamente todos os documentos necessários para provar que seu filho não fala, não anda e usa fraldas. E precisa do BPC, destinado a idosos e pessoas com deficiência e sem condições de trabalhar.

Assim como Cristina, outros 4,2 milhões de brasileiros que recebem o benefício terão de passar até novembro pela revisão determinada pelo governo Temer. Mais do que uma simples verificação, espera-se economizar pelo menos 800 milhões de reais com benefícios a serem descontinuados.

A medida é apenas um dos passos de uma ação maior destinada a reduzir o tamanho do Estado brasileiro. Pilar dessa política a sustentar o governo é a Proposta de Emenda Constitucional 241/2016, também chamada de PEC do Teto de Gastos.

Tratada como prioridade máxima pelo Palácio do Planalto, a PEC tem como objetivo colocar um limite para as despesas primárias dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, para cada exercício, pelos próximos 20 anos. Na prática, significa que o governo só poderá gastar até um determinado valor em itens relevantes como pessoal, saúde, educação, transferência de renda e Previdência, entre outros.

É a proposta que garante governabilidade a Temer no Congresso. Juntamente com a reforma da Previdência, que pretende mudar as regras para a concessão de aposentadorias, o ajuste das contas públicas é tido como uma das principais razões da aliança entre PMDB e PSDB no governo.

Por conta disso, o tema tem sido tratado com urgência pelos interlocutores do presidente. Segundo o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), a PEC deve ser votada até o fim de outubro.

O interesse do PSDB pela aprovação da pauta explicita o caráter da proposta, perfeitamente afinada com a política de austeridade. De acordo com o texto da PEC, o Orçamento para os gastos públicos de cada ano será definido pelo crescimento da inflação do ano anterior. Portanto, deixa de ser vinculado à Receita ou ao crescimento do Produto Interno Bruto (PIB).

Isso quer dizer que, mais do que impedir o governo de gastar valores superiores ao que arrecada, a proposta impede aumento de gastos em áreas sensíveis mesmo que o País se torne mais rico. Tal é a principal regra e, segundo o texto, só poderia ser revista por iniciativa exclusiva do presidente da República após dez anos, em 2026.

O prazo final do ajuste se completaria somente em 2036, após mais de dois mandatos presidenciais completos. Conclusão: o Novo Regime Fiscal retira da sociedade e do Parlamento a prerrogativa de moldar o tamanho do Orçamento, definido agora pela inflação.

Ao colocar um limite para os gastos da União pelas próximas duas décadas, independentemente dos governos que possam vir a ser eleitos ou de uma melhora da situação econômica, a proposta basicamente institucionaliza um ajuste fiscal permanente.

“O objetivo é reduzir o tamanho do Estado, é uma austeridade contratada por 20 anos”, explica o professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Pedro Linhares Rossi. Cálculos feitos com base na regra proposta pelo Planalto corroboram os seus argumentos. O professor da Unicamp analisou os gastos com despesas primárias para os próximos anos num cenário de crescimento do PIB de 2,5% ao ano, a partir de 2018. Os números mostram que, com a PEC 241, os gastos do PIB com esse tipo de despesa cairiam dos atuais 19% do PIB para cerca de 12% 2036.

Rossi explica que isso tornaria o Estado muito menor que a economia brasileira, o que impediria uma intervenção governamental em uma situação de crise financeira. “A PEC vai retirar do Estado aa possibilidade de fazer frente a crises. Não há uma cláusula de escape nessa PEC, coisa rara nos regimes fiscais no mundo todo. Ou seja, se acontecer mais uma crise fenomenal internacional o que nós fazer? Nada”, conclui.

Cabeça por trás da proposta, o ministro da Fazenda, Henrique Meirelles. Justificativa: a raiz do problema fiscal do Brasil é, segundo ele, o crescimento elevado do gasto público, que seria incompatível com o crescimento da Receita.

“No período 2008-2015, essa despesa cresceu 51% acima da inflação, enquanto a Receita evoluiu apenas 14,5%”, diz o texto que integra a PEC, assinado por Meirelles e Dyogo Henrique de Oliveira, atual ministro do Planejamento, Orçamento e Gestão.

A tese de descontrole das contas públicas tem gerado muitos questionamentos. Segundo o Departamento Intersindical de Estudos Econômicos (Dieese), a observação dos dados referentes a receitas e despesas contradiz essa afirmação.

“As despesas primárias, como se disse, tiveram um comportamento compatível com o aumento das receitas até 2012”, diz a Nota Técnica 161, elaborada pela instituição em setembro, sobre os impactos da PEC 241. Para o Dieese, o descompasso dos gastos começa de forma mais profunda com o ajuste fiscal implementado pelo ex-ministro Joaquim Levy, ainda sob o comando de Dilma Rousseff, justamente quando a União cortou gastos e o Estado deixou de contribuir com a economia.

A consequência foi que a receita despencou e os gastos continuaram no mesmo patamar. “O problema fiscal está associado à estagnação econômica de 2014, seguida pela crise, e ao ajuste recessivo adotado em 2015.” Foi nessa época que “as receitas se deprimiram, comprometendo o equilíbrio fiscal”, diz o texto.

Em outras palavras, segundo o Dieese, o aprofundamento da recessão fiscal no País é, em parte, responsabilidade do próprio ajuste, que agora se apresenta como solução para a economia ao aviar a mesma receita: corte de gastos.

O próprio Fundo Monetário Internacional (FMI) chegou a uma conclusão parecida recentemente. Em maio, três economistas da instituição publicaram um artigo dizendo quepolíticas neoliberais podem gerar efeitos nocivos para a economia de países em desenvolvimento. Por exemplo, aumentar a desigualdade.

Ao falar em neoliberalismo, o FMI refere-se às medidas de austeridade. “Os benefícios de algumas políticas que são uma parte importante da agenda neoliberal parecem ter sido um pouco exagerados. Em vez de gerar crescimento, algumas políticas neoliberais aumentaram a desigualdade, colocando em risco uma expansão duradoura”, confessa o Fundo.

Gráfico

“Mesmo que o crescimento seja o único ou principal objetivo da agenda neoliberal, os defensores dessa agenda devem prestar atenção nos efeitos de distribuição”, complementa.

Enquanto o FMI alerta para a importância da distribuição de renda, o governo Temer tenta apagar esse termo da trajetória brasileira para os próximos anos. A pedido do presidente, a Comissão Mista de Orçamento do Congresso Nacional alterou o texto que trazia os objetivos do Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) de 2017, ao traçar as metas e prioridades da gestão pública federal e orientar a Lei Orçamentária anual.

Foram retirados os termos que comprometiam a administração pública federal a assegurar “distribuição de renda”, o “fortalecimento dos programas sociais”, bem como a execução de “políticas sociais redistributivas”.

O texto que embasa a PEC 241, assinado por Meirelles e Oliveira, ainda diz que conter o aumento do gasto público vai contribuir para a diminuição do crescimento da dívida públicabrasileira. “Vinte anos é o tempo que consideramos necessário para transformar as instituições fiscais por meio de reformas que garantam que a dívida pública permaneça em patamar seguro”, afirmam os ministros. Segundo dados do Banco Central, a dívida pública brasileira chegou, em 2015, ao nível de 66,2% do PIB.

O governo ignora, no entanto, que não existe unanimidade sobre o que é um patamar seguro para a dívida pública no mundo. Há, sim, vários países com uma dívida menor do que a brasileira: Argentina (56% do PIB em 2015) e Chile (14% do PIB), entre eles.

Contudo, mesmo países mais desenvolvidos possuem dívidas substancialmente maiores, como é o caso da Espanha (99%), EUA (106%), e o mais extremo, o Japão, que tem uma dívida de 248% do valor de seu Produto Interno Bruto.

Apesar das críticas, o Japão preferiu uma política de expansão monetária à austeridade imposta na Europa. “Não há um número mágico a partir do qual a relação dívida pública/PIB torna-se problemática. A dívida brasileira é tão grande? Qual é o parâmetro para a definição de grande? Na verdade, os economistas não se arriscam a definir um parâmetro ótimo para dívida pública, simplesmente porque ele não existe”, afirma documento lançado em agosto deste ano sobre a austeridade e a política fiscal no Brasil, por instituições como a Fundação Friedrich Ebert Stiftung e a Fórum21.

É o que defende o economista Felipe Rezende, Ph.D. e professor assistente do Departamento de Economia do Hobart e William Smith Colleges, em Nova York. Ele foi um dos convocados pela Comissão de Assuntos Econômicos do Senado Federal a debater sobre o assunto, no fim de agosto, em uma sessão com integrantes do governo Temer.

“Esse tipo de debate foi realizado em outros países que também passaram por um aumento muito forte dos déficits públicos e da dívida pública. Nos países onde essa tentativa de ajuste fiscal foi feita, falharam em promover a recuperação econômica em todos eles. O ajuste fiscal, onde foi implementado, não gerou recuperação econômica”, defendeu Rezende na ocasião, diante da equipe econômica do governo.

Na opinião do economista, o governo Temer comete um “erro gravíssimo” no diagnóstico das razões da crise econômica brasileira. A explicação para a solvência vem de outro lado. “Esta não é uma crise do setor público, e sim do setor privado. Eu finalizei um trabalho este ano sobre a situação das empresas do setor privado no Brasil. O estudo mostra haver uma deterioração do balanço dessas companhias desde 2007”, alerta.

“As empresas privadas no Brasil tiveram uma posição de endividamento líquido tão significativa que esse processo foi revertido e colocou pressão sobre os déficits públicos. Como esperado em momentos como esses, hoje o Brasil tem uma crise de solvência do setor privado. É uma crise diferente das anteriores.”

O debate promovido pelo Senado sobre o assunto provocou reações na Casa. “A proposta é tão anormal que nenhum economista ou professor universitário com credibilidade se atreveu a defendê-la”, ironizou, em discurso no Plenário, o senador Roberto Requião (PMDB-PR).

“No dia 16 de agosto, a Comissão de Assuntos Econômicos do Senado debateu o assunto. Meirelles mandou dois funcionários de segundo escalão para defender a proposta. Confrontados pelos professores convidados a fazer uma análise séria do assunto, exibiram a grande fragilidade da PEC 241 e da visão econômica do chefe”, disse.

Requião ainda chamou a PEC 241 de “aberração” e disse que congelar os gastos públicospode levar o País ao caos político e econômico. “Essa proposta tão absurda serve para mostrar o grau de anormalidade política e institucional em que vive hoje o País.”

Alvos: saúde e educação

Além de um diagnóstico errado, a equipe econômica de Meirelles deposita todo o sucesso da proposta na oneração de áreas como educação e saúde. Ao anunciar a limitação de gastos, em meados de junho, ao lado de Temer, o ministro da Fazenda classificou-a de “dura” e admitiu que o foco era conter as despesas com saúde e educação, ambas vinculadas à evolução da arrecadação federal.

O próprio texto da PEC explicita esse objetivo. Como a ideia é colocar um teto de gastos para a saúde e a educação, a proposta suspende, pelo mesmo período de 20 anos, a aplicação mínima definida pela Constituição Federal nas duas áreas.

Esse montante passa a ser calculado com a mesma regra que limita as despesas públicas, com correção pela inflação do ano anterior. Dessa forma, as despesas gastas em saúde e educação deixam de estar vinculadas às Receitas.

Isso revela a falta de sincronia ou interesse do governo Temer com o programa aprovado nas urnas em 2014 e com os reais interesses da sociedade brasileira. Uma pesquisa do Ibope, realizada em 2014 a pedido da Confederação Nacional da Indústria (CNI), mostra que a saúde, a segurança pública e a educação são, em ordem decrescente, os temas que deveriam ser tratados como prioridade pelo governo federal, na opinião de eleitores.

Para se ter uma ideia do peso dessas mudanças na prática, o Dieese fez uma simulação para comparar os gastos que efetivamente foram empenhados em saúde e educação nos últimos anos com os montantes que teriam sido transferidos, caso a PEC 241 tivesse sido implantada no passado. A conclusão é de que “os gastos teriam sido significativamente menores”.

No caso da educação, se a PEC estivesse valendo desde 2006, a redução do valor destinado para a área seria de 55%, no período. Já em relação às despesas com saúde, a redução seria de 33%. Em relação ao montante de recursos, a perda na educação, entre 2006 e 2015, teria sido de 384 bilhões de reais e, na saúde, de 290 bilhões. Esse valor corresponde a quase 120 vezes o custo do Programa Mais Médicos.

Outro órgão que analisou o tema foi o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Em Nota Técnica, publicada neste mês, os técnicos da Diretoria de Estudos e Políticas Sociais (Disoc) desenharam um cenário crítico que a PEC 241 pode causar no Sistema Único de Saúde (SUS).

Documentos

Contrariando, inclusive, o presidente do Ipea, Ernesto Lozardo, amigo de Temer e defensor da proposta publicamente, o estudo mostra que a limitação dos gastos impactará negativamente no financiamento e na garantia do direito à saúde no Brasil.

Mais que isso, o Ipea acentua que o gasto com saúde tem efeito multiplicador no PIB e não o contrário, como tenta argumentar a equipe econômica de Meirelles. “No Brasil, o valor adicionado bruto das atividades de saúde foi responsável por 6,5% do PIB em 2013. No mesmo ano, a atividade de saúde pública teve participação de 2,3% do PIB (Brasil, 2015). Nesse contexto, o gasto público com saúde coloca-se como importante propulsor do crescimento econômico”, dizem os técnicos.

“O efeito multiplicador do gasto com saúde no País foi calculado em 1,7, ou seja, para um aumento do gasto com saúde de 1 real, o aumento esperado do PIB seria de 1,70 real.”

O economista da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e colunista de CartaCapital João Sicsú fez um cálculo parecido com o do Dieese, mas projetado para os próximos anos. Partindo de um cenário de estagnação da economia brasileira, com a PEC 241 em vigor, haverá uma queda real de 6% no gasto per capita com educação e saúde no País.

Diante desse cenário, parlamentares de oposição preparam um mandado de segurança contra a proposta no Supremo Tribunal Federal. O eixo central é que a PEC 241 atenta contra cláusulas pétreas da Constituição, como a de separação dos Poderes.

Além disso, interfere no Orçamento de outros Poderes, como o Judiciário. Com uma redução tão drástica nos recursos de despesas primárias, a proposta também pode levar, por consequência, a um achatamento dos programas sociais, em detrimento de outros.

O economista Pedro Linhares Rossi resume: “É uma catástrofe, isso refaz o pacto social. O que acontece hoje é uma demonstração de força. Eu acho difícil isso passar. Eu não acredito na aprovação desse texto por piores que sejam os nossos parlamentes. Mas essa PEC é demonstração de força política do mercado, é feita para o mercado, e para beneficiar uma elite que não quer pagar imposto”.

Fonte: cartacapital.com.br