O Senado e o STF ensaiam uma regressão de 190 anos na legislação trabalhista.
Está nas mãos do Congresso e do Supremo Tribunal Federal, com apoio do governo Temer, a decisão sobre se o Brasil permanece às portas do século XXI ou retorna a um passado de mais de 190 anos, o da Constituição de 1824.O Senado deve votar a qualquer momento o Projeto de Lei 4.330, aprovado pela Câmara, para permitir a terceirização das atividades-fim, até hoje só admitida nas atividades-meio. O STF informou ao Congresso que, se ele não der tratamento à questão, a Corte apreciará a ação da empresa Cenibra, que vai na mesma direção do projeto de lei.
A fabricante de celulose, controlada pela multinacional Japan Brazil Paper and Pulp Resources Development, questiona a Súmula 331, do Tribunal Superior do Trabalho, que tem orientado julgamentos na Justiça Trabalhista fazendo a distinção entre atividade-fim e atividade-meio. Sempre que a atividade-fim é caracterizada, a empresa perde a ação, pois essa súmula diz que não se pode terceirizar a atividade-fim.
A Cenibra alega que a súmula fere um princípio constitucional, o da liberdade de a empresa contratar quem quiser e como desejar. A ação está nas mãos do relator, ministro Luiz Fux, pronta para apresentação ao plenário. Caso a decisão do tribunal saia antes e seja favorável ao argumento da Cenibra, a terceirização radical será admitida e a votação do Projeto de Lei 4.330 perderá sentido.
A questão tem repercussões amplas e graves. “As ideias de Estado sem responsabilidade e de iniciativa e propriedade privadas sem controles estão presentes somente em duas Constituições, as de 1824 e de 1891”, alertou o ministro do Tribunal Superior do Trabalho Maurício Godinho Delgado, a propósito do risco da derrubada da Súmula 331, durante o Fórum em Defesa dos Direitos dos Trabalhadores Ameaçados pela Terceirização, em 2014.
Ao contrário de outros países da América Latina, não há no Brasil uma lei a regulamentar a questão. A contratação de terceiros para realizar serviços de limpeza e segurança (atividades-meio) em uma montadora, por exemplo, é aceita, mas não se admite delegar a produção de veículos (atividade-fim) a outras empresas.
“O grande embate resume-se numa frase: terceirizar ou não a atividade-fim. Isso é que está pegando. Entendemos que não pode. Por todos os indicativos, vai ser uma esculhambação danada, uma lambança generalizada. Haverá metalúrgico sem metalúrgica, comerciário sem comércio, professor sem escola, bancário sem banco. Porque eles serão funcionários de um escritório. Esse escritório é que vai encaminhar trabalhadores para essa ou aquela área conforme a sua atividade”, resume o senador Paulo Paim, relator do Projeto de Lei 4.330.
“A Súmula 331 é um instrumento de proteção parcial aos trabalhadores e, se for revertida, os empresários nadarão de braçada”, prevê Clemente Ganz Lúcio, diretor técnico do Dieese. “As empresas, especialmente as federações e a Confederação Nacional da Indústria, atuam pela liberação da terceirização para qualquer atividade, o que não tem acordo com os trabalhadores, a Justiça, as entidades do Fórum sobre o tema.”
Os empresários discordam e endossam os argumentos de Hélio Zylberstajn, da Faculdade de Economia e Administração da USP. Há exagero em apontar o risco de terceirização ampla das atividades-fim, argumenta o professor em um artigo. “Uma escola séria dificilmente terceirizaria suas salas de aula.” O Projeto de Lei 4.330 é equilibrado, diz, com salvaguardas que limitarão o uso da possibilidade às situações em que aumentará a eficiência sem prejudicar os terceirizados. O PL equaciona o conflito entre os sindicatos das categorias principais, que querem assumir a representação dos terceirizados, e as entidades empresariais, que preferem a representação nas mãos daqueles menos poderosos.
Quando a atividade terceirizada for relacionada à atividade principal da empresa, o sindicato principal representará os trabalhadores. No caso contrário, a entidade dos terceirizados será a representante. Segundo Zylberstajn, a aprovação da regulamentação tende a elevar a competitividade do País e o risco de perda de arrecadação será solucionado em parte com a determinação à empresa contratante de retenção na fonte dos tributos que seriam recolhidos pela terceirizada.
Maximiliano Garcez, advogado de entidades sindicais e diretor para assuntos legislativos da Associação Latino-Americana de Advogados Laboralistas e integrante do Fórum da Terceirização, discorda. “A premissa é equivocada, não partimos de um argumento de que a terceirização “transformaria” o mercado de trabalho em uma selva. Ela já existe para mais de 12 milhões de trabalhadores formais e torna esse setor uma selva.
Afirmar que empresários sérios não se utilizarão das medidas de terceirização a partir única e exclusivamente da racionalidade econômica sugere que se deve confiar na manutenção de um patamar mínimo de civilidade nas relações de trabalho pela índole dos empresários individuais, o que é altamente discutível, critica Garcez. Segundo o advogado, não há equilíbrio, pois, o projeto permite a terceirização irrestrita, a quarteirização, e assim por diante. “Trata-se de regulamentação do trabalho escravo contemporâneo. Não há exigência de garantias razoáveis para o cumprimento das obrigações trabalhistas das empresas terceirizadas.
A legislação permite uma ampla discricionariedade quanto às exigências, o que leva, obviamente, à sobreposição da lógica econômica nessas relações.” Além disso, diz, há uma tentativa clara de limitação das responsabilidades da contratante decorrentes da terceirização, com agravamento da situação precária de hoje. As empresas gostariam que a representação ficasse com os sindicatos terceirizados “porque assim será possível reduzir ainda mais os direitos de quem trabalha e lucrar com a miséria e a precarização do seu esforço”.
A melhor competitividade, se ocorrer, será à custa desses direitos, com a redução do valor do trabalho. Quanto à retenção de tributos, não afasta a possibilidade concreta de diminuição da arrecadação, principalmente em virtude da redução geral dos salários e de direitos que a medida aprofundará, analisa Garcez.
“As reformas redutoras da proteção social ao trabalho duramente conquistada enfrentam resistência significativa na sociedade e por isso transitam com dificuldade no Congresso, mas encontram amplo acolhimento no Supremo Tribunal Federal”, aponta Magda Biavaschi, desembargadora aposentada da Justiça do Trabalho, pesquisadora do Centro de Estudos Sindicais e Economia do Trabalho da Unicamp e uma das coordenadoras do Fórum da Terceirização.
A grande maioria dos ministros, diz, apoia sistematicamente as teses liberalizantes da Confederação Nacional da Indústria, da Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária e do programa Ponte para o Futuro, do PMDB. No encaminhamento da ação da Cenibra, mencionado acima, “está em questão, no limite, a própria possibilidade de o Tribunal Superior do Trabalho uniformizar a jurisprudência trabalhista via súmulas que coloquem limites às formas de contratação precarizantes, como é o caso da Súmula 331”.
Outros casos envolvem tanto o tema da terceirização quanto o da prevalência do negociado sobre o legislado, como aconteceu recentemente com as horas in itinere ou do deslocamento necessário ao trabalho, e com a liberação da jornada de 12 horas para os bombeiros.
As vantagens da terceirização para as empresas são tão evidentes quanto os prejuízos aos trabalhadores, mostram o noticiário e milhares de ações na Justiça. Empresas terceirizadas com frequência pagam mal, descumprem a legislação, forçam atividades insalubres e arriscadas, têm alta rotatividade, fraudam contratos e sonegam informações.
O recurso ao expediente só cresce. Entre 2007 e 2014, enquanto aumentou em 28,78% a quantidade de trabalhadores não terceirizados, de 27,6 milhões para 35,6 milhões, houve um salto de 46,5% no total de terceirizados, de 8,5 milhões para 12,5 milhões, de acordo com o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos. A remuneração média do segundo grupo corresponde a apenas 76,6% daquela do primeiro contingente. Na faixa entre 1,5 e 1,6 salário mínimo, a proporção de acidentes sobre o efetivo total foi de 9% entre os não terceirizados, mas atingiu 17% para os terceirizados, em dezembro de 2014.
Sem regulamentação, a realização de serviços terceirizados é altamente lucrativa, evidenciam os resultados das prestadoras de serviços de teleatendimento, entre outras. O faturamento do setor aumentou de 35 bilhões de reais, em 2012, para 43 bilhões, em 2014, com a mesma quantidade de posições de atendimento e uma diminuição do número de funcionários, de 1,65 milhão para 1,62 milhão. É o que mostra o trabalho de conclusão de curso de Fábio Oliveira da Silva, aluno da Escola Dieese de Ciências do Trabalho e dirigente do sindicato da categoria.
O crescimento do número de acidentes quando se terceiriza é evidente, mas até as maiores empresas reincidem em erros graves. Milhares de trabalhadores do setor elétrico de Minas Gerais enfrentam todos os dias um elevado risco de morte. Entre 2007 e 2015, acidentes de trabalho mataram 32,6 em cada 100 mil terceirizados da Cemig Distribuição, segundo Jefferson Silva, coordenador-geral do Sindieletro, o sindicato do setor. É o quíntuplo dos 6,4 acidentes fatais por 100 mil integrantes do quadro próprio da empresa. Os números estão subestimados. Há casos de acidentados registrados em hospitais como vítimas de queimadura, não de descarga elétrica, descobriu a entidade.
Em 2013, o Ministério do Trabalho e o Ministério Público encontraram 44 violações dos direitos trabalhistas e dos direitos humanos, inclusive trabalho análogo à escravidão entre as terceirizadas. Os fiscais flagraram também fraude na aferição da produtividade. “As horas extras e as médias de produtividade não são pagas no contracheque do trabalhador, mas por fora e não entram no cômputo da produtividade”, relata Silva.
No governo FHC, um plano de demissão voluntária provocou um aumento radical da terceirização na Petrobras, seguido da explosão e afundamento, em 2001, da plataforma P-36, a maior do mundo. Uma comissão externa da Câmara relacionou o acidente à terceirização e recomendou a ampliação do quadro próprio. O novo plano de demissão voluntária do presidente da empresa, Pedro Parente, tem mais de 12 mil inscritos e deverá resultar em uma nova escalada da terceirização. “Isso é bastante preocupante, acende a luz amarela, porque estamos às portas de um novo acidente”, prevê o sindicalista.
Fonte: cartacapital.com.br