Problemas da dívida pública

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Déficits fiscais sistemáticos acumulados levantam dúvida sobre a sustentabilidade da sua relação com o PIB.

Sempre temos insistido que a economia não é uma “ciência”, mas isso não a faz menos útil para a boa administração da sociedade que procura uma melhor acomodação dos interesses conflitantes dos seus membros.

Um dos seus instrumentos fundamentais é a construção da contabilidade nacional. Ela rege o cálculo do Produto Interno Bruto (PIB), que é o valor adicionado (salário + lucro) de todos os agentes que produzem os bens e serviços.

Estabelece, com definições adequadas, identidades entre as variáveis macroeconômicas sobre as quais temos curiosidade: PIB, poupança, investimento, consumo, gastos do governo, exportação, importação. Como são identidades, não podem ser violadas.

Quando a política econômica tenta ignorá-las, sempre termina num pasticcio como aquele em que estamos vivendo. Por exemplo, o valor adicionado a preços de mercado dos componentes do PIB no primeiro trimestre de 2016 foi de 1.474 bilhões de reais, distribuídos conforme mostra o quadro.

O cálculo do PIB, sendo a valor de mercado, inclui os impostos pagos ao governo (T), que foi de 214 bilhões, ou seja, 17% sobre o valor adicionado (1.260 bilhões) pelo trabalho (salário) e pela remuneração do capital (lucro).

Com esses números, podemos estimar a poupança nacional (S), que é, por definição, tudo aquilo que não foi consumido: S = Y – C = I + X – M. Isto é, o que foi deliberadamente investido ou restou como estoque (I), somado ao saldo em conta corrente (X-M), as exportações “líquidas”, que chamaremos de NR. No nosso caso, S(=17) = I(18) – NR(1).

O aumento do déficit público (o aumento das despesas do governo, incluído no consumo C, acima), reduz a poupança nacional, mesmo quando financiada pelo aumento da dívida pela venda de Bônus do Tesouro ao setor privado. Com esse exercício, podemos avançar para entender quais os possíveis efeitos sobre a macroeconomia das variações do déficit público.

O que a identidade S = I + NR exige como resposta a qualquer elevação do consumo privado? Digamos uma elevação do salário mínimo real sem correspondência com o crescimento da produtividade do trabalho ou uma expansão do consumo público (uma distribuição que eleva o déficit sem aumentar a produtividade da economia, mas reduz a poupança global)?

A resposta é simples e inexorável: ou uma redução dos investimentos (I) ou um crescimento do endividamento externo (NR), ou uma combinação dos dois. A identidade será mantida pelos efeitos do funcionamento dos três preços básicos da economia: a elevação do salário real (que reduziu a poupança) será compensado por um aumento da taxa de juros real (que reduzirá o investimento) e pela valorização do câmbio real (que aumentará o déficit externo), ou pelos dois.

Déficits fiscais sistemáticos acumulados levantam dúvida sobre a sustentabilidade da relação dívida bruta/PIB e magnificam essas consequências. No longo prazo, o PIB potencial depende da relação entre a tecnologia incorporada ao estoque de capital (K) por unidade da mão de obra que pode e deseja trabalhar com capacidade para operá-lo (L).

A quantidade e a qualidade do capital (K) dependem dos investimentos físicos e a quantidade e disponibilidade da mão de obra capaz dependem da demografia e dos investimentos em capital humano (saúde e educação). Investimento, investimento, investimento… É contra ele que conspira o déficit público exagerado! A dívida pública deve financiar o investimento. Nunca despesas correntes, salários ou transferência de renda.

O déficit público e a sua acumulação alteram a alocação dos recursos para satisfazer as identidades da contabilidade nacional. Modificam-se o valor do salário real, a taxa de retorno real do capital e a taxa de juro real. Ao final e ao cabo, podem acabar alterando a distribuição de renda de forma diferente da esperada por seus praticantes.

A “ciência lúgubre” às vezes prega peças aos “pragmáticos” que exageram nas virtudes do déficit público (que, certamente, existem), mas insistem em ignorar suas consequências quando feito descuidadamente. A quem ainda tiver dúvidas e sobrar curiosidade, tomo a liberdade de sugerir a leitura do clássico (neoclássico, sim senhor!), Ball, L. e Mankiw, G. –What Do Budget Deficits Do?, 1995. 

Fonte: cartacapital.com.br