Aumentar a duração do trabalho e reduzir os salários prejudica a demanda, mas isso não parece preocupar a CNI.
No Brasil das soluções que atiçam o feitiço contra o feiticeiro, há quem proponha “dinamizar” os mercados de trabalho com a jornada de 80 horas semanais. Aviada nos neurônios do presidente da CNI, a sugestão foi repudiada pelas centrais sindicais. Em uma situação de desemprego em ascensão e salários reais em queda, tudo indica que o aumento da jornada vai aprofundar os dois movimentos.
Vale lembrar que as reformas na legislação trabalhista da França, citadas como exemplo, há meses têm levado centenas de milhares às ruas em protesto contra o governo de François Hollande.
Franceses à parte, há mais de 150 anos, ao observar os efeitos sociais e econômicos do capitalismo nascido da Revolução Industrial, um pensador compreendeu as peculiaridades envolvidas na generalização do regime de assalariamento:
“Quando se trata de seu trabalhador, todo capitalista sabe que não se confronta com ele como produtor frente ao consumidor, e deseja limitar ao máximo seu consumo, i.e., sua capacidade de troca, seu salário. Naturalmente, ele deseja que os trabalhadores dos outros capitalistas sejam os maiores consumidores possíveis de sua mercadoria. Todavia, a relação de cada capitalista com os seus trabalhadores é de fato a relação de capital e trabalho, a relação essencial. No entanto, provém precisamente daí a ilusão – verdadeira para o capitalista individual – de que, excetuando-se seus trabalhadores, todo o resto da classe trabalhadora se defronta com ele, não como trabalhadores, mas como consumidores e trocadores – gastadores de dinheiro… Portanto, o próprio capital considera a demanda dos trabalhadores – i.e., o pagamento do salário, no qual se baseia essa demanda – não como ganho, mas como perda… O capital se apresenta como uma forma peculiar da relação de dominação precisamente porque o trabalhador se defronta com ele como consumidor e detentor de valor de troca, na forma de possuidor de dinheiro… Portanto, de acordo com sua natureza, o capital põe um obstáculo para o trabalho e a criação de valor que está em contradição com sua tendência de expandi-los contínua e ilimitadamente. E uma vez que tanto põe um obstáculo que lhe é específico quanto, por outro lado, avança para além de todo obstáculo, o capital é a contradição viva”. (Karl Marx, Grundrisse)
O capitalista Henry Ford entendeu que os salários, ademais de custo para as empresas, são também fonte de demanda para seus automóveis e outros badulaques. Compreendeu que a formação da renda e da demanda agregadas depende da disposição de gasto dos empresários com salários e outros meios de produção que também empregam assalariados.
Ao decidir gastar com o pagamento de salários e colocar sua capacidade produtiva em operação ou decidir ampliá-la, o coletivo empresarial avalia a perspectiva de retorno de seu dispêndio imaginando o dispêndio dos demais.
Até meados dos anos 70 do século passado, as economias desenvolvidas prosperaram à sombra do fordismo, em um ambiente de ganhos de produtividade, sistemas de crédito direcionados para o investimento, aumento dos salários reais, redução das desigualdades e ampliação dos direitos sociais.
A partir dos anos 1980, a liberalização das contas de capital e a desregulamentação financeira e comercial revigoraram a vocação universalista das empresas americanas. No afã de reduzir os custos salariais e escapar do dólar valorizado, a produção manufatureira americana buscou as regiões em que prevaleciam baixos salários, câmbio desvalorizado e perspectivas de crescimento acelerado.
Esse movimento promoveu a “arbitragem” com os custos salariais à escala mundial, estimulou a flexibilização das relações de trabalho nos países desenvolvidos e subordinou a renda das famílias ao aumento das horas trabalhadas. O desemprego aberto e disfarçado, a precarização e a concentração de renda cresceram no mundo abastado.
As fabulações das transformações tecnológicas da inteligência artificial, da internet das coisas e da nanotecnologia prometem as delícias do tempo livre. Na contramão, as narrativas dos ganhos de produtividade não impedem, mas suscitam, a intensificação do ritmo de trabalho dos que conseguem escapar da precarização ou se manter empregados.
O estudo “Crescente polarização da renda no Estados Unidos”, publicado pelo FMI no dia 28 de junho, demonstra como os reflexos desses movimentos são sentidos de forma mais dramática na classe média.
As pessoas de renda média que representavam aproximadamente 58% da população dos EUA nos anos 1970 tiveram sua participação reduzida para 47% em 2014. A tendência de polarização é consistente para diferentes cortes de definição de renda média. A exclusão do 1% mais rico ou análises considerando idade, raça ou educação produzem o mesmo resultado.
Os dados de participação dos diferentes níveis de renda na economia corroboram a polarização observada na população. A participação da renda média na economia era de 47% em 1970 e caiu para aproximadamente 35% em 2014.
A contraparte desse decréscimo pode ser observada no aumento da participação da renda alta, dado que não há ganho para a baixa renda durante todo o período. O estudo conclui que esse movimento se explica pelo “baixo dinamismo do mercado de trabalho” norte-americano.
Nessa situação, é o circuito crédito-consumo que cria poder de compra adicional para as famílias de baixa e média renda, ao mesmo tempo que as aprisiona no ciclo infernal do endividamento crescente. No topo da pirâmide da distribuição da riqueza e da renda, os credores líquidos se apropriavam de frações cada vez mais gordas da valorização dos ativos reais e financeiros.
Os detentores de riqueza financeira apropriam-se do “tempo livre” criado pelo avanço tecnológico que promove simultaneamente a desqualificação da massa assalariada e a polarização do mercado de trabalho; os “desqualificados” tornam-se dependentes crônicos do endividamento, sempre ameaçados pelo desemprego e, portanto, obrigados a competir desesperadamente pela sobrevivência.
*Publicado originalmente na edição 910 de CartaCapital, com o título “Uma jornada muito particular”.
Resposta da CNI:
A CNI jamais defendeu aumento na carga horária do trabalhador brasileiro. Jamais defenderia esta proposta por ser inconstitucional. O presidente da CNI jamais disse que o trabalhador deveria trabalhar mais do que as 44 horas.
Réplica da Redação:
Ao desmentir a informação em seu site institucional, a CNI reproduziu a fala de seu presidente, Robson Braga de Andrade: “Nós aqui no Brasil temos 44 horas de trabalho semanais. As centrais sindicais tentam passar esse número para 40. A França, que tem 36 horas, passou agora para 80, a possibilidade de até 80 horas de trabalho semanal (sic, são 60 horas) e até 12 horas diárias de trabalho. A razão disso é muito simples, é que a França perdeu a competitividade da sua indústria com relação aos outros países da Europa. Então, a França está revertendo e revendo as suas medidas para criar competitividade. O mundo é assim. A gente tem que estar aberto para fazer essas mudanças.”
Fonte: cartacapital.com.br