Relatório sugere que Brasil reconheça crime de escravidão

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Comissão Nacional da Verdade quer pedido oficial de desculpas aos negros.

 

O governo brasileiro deve um pedido formal de desculpas e precisa reconhecer, em decreto presidencial, seu envolvimento oficial no crime de escravidão, que é imprescritível. Essa é uma das recomendações do relatório da Comissão Nacional da Verdade da Escravidão Negra do Brasil, que será apresentado na Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), em Brasília, amanhã, quarta-feira. O documento tem 316 páginas e traz um amplo e detalhado cenário histórico e investigativo sobre esses episódios.

O relator do texto, o procurador do Trabalho Wilson Prudente, concluiu que o Império do Brasil, o Reino de Portugal e a Igreja Católica incorreram em práticas criminosas contra os negros e em tipos penais como genocídio e crimes contra a humanidade. O relatório pretende acabar com mitos sobre algumas questões, segundo o relator, como a de que a República no Brasil veio acompanhada do trabalho livre, que a escravidão era legal e que o ambiente era cordial e que os negros já eram escravos na África. Seu texto conclui que a verdadeira abolição da escravatura não se deu em 1888, com a Lei Áurea, mas ocorreu em 1910, com a Revolta da Chibata, liderada por João Cândido.

— É um mito acreditar que a República veio acompanhada do trabalho livre — disse Wilson Prudente.

Ao tratar sobre o pedido de desculpas, Prudente recomenda que o Estado brasileiro desça de seu “pedestal de arrogância” e reconheça que cometeu esses crimes contra os negros.

“Mediante tal reconhecimento que formalize através de instrumentos legais o seu necessário e tardio pedido de desculpas. A recusa do Estado em se curvar a tais providências continuará a transmitir uma ideia de franca e consciente cumplicidade com aqueles fatos do passado de repercussões tão similares ainda nos nossos dias” — conclui o relator em seu texto.

O relatório, uma iniciativa da OAB, propõe, na impossibilidade de um decreto, que o governo Dilma Rousseff, envie ao Congresso Nacional um projeto de lei reconhecendo o envolvimento do Estado brasileiro na escravidão. O relatório é apresentado como um documento que está reescrevendo algumas das páginas mais horripilantes da História do país.

“Se houve algum colorido a ser identificado nessas páginas era o vermelho do sangue, que cobria a pele preta daquela gente africana. Se havia algum som que pudesse ser audível, era o grito de dor de quem era submetido a torturas tão cruéis. Se há fato abominável ocultado dos livros didáticos e dos manuais de história de todos os níveis de ensino, é que o Império do Brasil cobrava taxas com natureza eminentemente tributárias para praticar a tortura em corpos africanos. Pretendemos com esse Relatório que o Estado brasileiro desça de seu pedestal de arrogância e reconheça de forma pública e oficial que praticou tais crimes”.

REDE DE CONEXÃO CRIMINOSA

Wilson Prudente relata que escravidão implicou numa rede de conexão criminosa. O primeiro crime praticado era o sequestro, “arrancando as pessoas africanas de suas famílias e comunidades para jamais serem devolvidas”. Era um sequestro continuado. Enquanto aguardavam os navios negreiros, já prestavam aos sequestradores trabalhos na agricultura.

— A escravização já se iniciava em território africano, com maus tratos permanentes e o aprisionamento para o resto da vida — diz Prudente.

O relator conta que o homicídio estava presente em todas as fases, acompanhado dos crimes de tráfico de pessoas, escravidão, tortura, estupro e abusos sexuais. O relatório associa esse passado ao presente no Brasil.

“A extensão dessas práticas criminosas configuravam genocídio e crimes contra a humanidade. Aproximadamente um século e três décadas após a Lei Áurea a sociedade brasileira fez o seu ingresso na pós modernidade, mas vive atormentada ainda pelos fantasmas da escravidão. O mito da escravidão legal e cordial foi sucedida pelo ainda existente mito da democracia racial. A cortina de fumaça em que consiste essa mitologização não afastou e não desligou a sociedade brasileira pós moderna de seu passado escravista” — diz o relatório.

Os sequestros das primeiras vítimas, diz o relator, implicavam em luta e violência, o que acarretava mortes. Era uma conduta em Portugal da época. A Igreja Católica tornou o comércio negreiro um monopólio de Portugal, através da Bula Papal.

“Como justificativa a Igreja representava o argumento, que apesar de terem os seus corpos escravizados, os negros teriam as suas almas salvas, uma vez que desde o início foi obrigatório o batismo de cada vítima do tráfico negreiro. Batismo efetivado mediante uma taxa que por sua natureza imperativa tratava-se de um tributo, temos nesse caso o crime de homicídio, portanto consubstanciado em matar membros do grupo, praticado pela Monarquia Portuguesa, através de seus prepostos, em associação com a Igreja Católica, que lhe deu suporte normativo e justificativa filosófica e religiosa”.

ESPERA POR PRONUNCIAMENTO DO VATICANO

Prudente afirma que o Vaticano dos nossos dias ainda não se pronunciou sobre esse passado da Igreja e espera que o Papa Francisco, por sua afinidades com grandes causas da Humanidade, também peça desculpas formais desse passado.

“Esse Relatório possibilitará ao Vaticano e em particular ao Papa Francisco a possibilidade de se redimir do silêncio cúmplice, que até hoje a Santa Igreja tem ostentado em relação ao tráfico negreiro, no qual a Igreja de Roma se envolveu de corpo e alma”.

O documento trata de vários outros episódios correlatos, como a alforria concedida a escravos para lutar na Guerra do Paraguai, com a dizimação das tropas brasileiras. O presidente dessa Comissão da Verdade, o advogado Humberto Adami, também um ativista dessa causa, entende que o pedido de desculpas é o mínimo a ser feito pelo governo brasileiro. Para ele, o que ocorreu com os negros naquele período, deveria ser motivo de comoção mundial. Adami diz que o racismo está presente nos dias de hoje e lamenta não haver uma presa no país por ter cometido esse tipo de crime.

— É um trauma coletivo reduzido na sociedade brasileira. E precisamos trazer isso à tona. O racismo está presente em cada lugar que você vai. Na indústria, nos bancos públicos e privados, nos partidos políticos. Há um racismo que é violento. Só temos uma ministra negra nesse governo (Nilma Lino, das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos). Isso não reflete a cara do Brasil — diz Adami.

Fonte: fsindical.org.br