O Golpe Militar-Civil de 1964

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Por Luciano Capistrano | Historiador e membro da Comissão Municipal da Verdade Luiz Maranhão

RAÍZES DO GOLPE

O povo brasileiro vivenciou, por 21 anos, uma série de governos militares que de forma geral caracterizaram-se pelo desrespeito às garantias individuais. Com os generais no poder, em abril de 1964, foi inaugurada uma época em que estudantes, camponeses, profissionais liberais, enfim, todos que ousavam contestar o governo vigente eram enquadrados na famigerada “Lei de Segurança Nacional”.

O modelo político pós-64 apresenta sua face mais cruel a partir de dezembro de 1968, com o Ato Institucional Número 5 (AI-5). Estava aberta a temporada de perseguições políticas É neste quadro do AI-5 que assume a presidência General Emílio Garrastazu Médici, iniciando aquela que seria a época mais obscura dos governos militares (COUTO, 1999).

Para compreender estes anos de ditadura militar é necessário, num primeiro momento, fazer algumas considerações sobre o cenário internacional e brasileiro o golpe militar-civil derrubou o Presidente João Belchior Marques Goulart. Num período, em que as organizações sociais se apresentavam fortalecidas, tendo inclusive constituído a FMP (Frente de Mobilização Popular) era esperada uma reação imediata contra o movimento popular. Conforme o Professor Emir Sader (1991, p.5) “O golpe militar-civil instaurou a ditadura militar e marcou a ruptura da ordem constitucional”. Assim rompeu-se a ordem democrática.

O Golpe de Abril no Contexto Internacional

A ascensão dos militares no comando do “Planalto Central” aconteceu dentro de um contexto internacional bastante favorável ao endurecimento do regime político. Segundo Hobsbawm (2000, p.341): “Havia mais espaço na política para homens dos tanques do que jamais antes”. Era tempo de Guerra Fria, confronto entre os Estados Unidos e a então União Soviética, período peculiar na história dos conflitos do século XX e que poderia ser definido como uma nova guerra mundial. O filósofo Thomas Hobbes confirma o que foi exposto, pois como observou: “A  guerra não consiste só na batalha, ou no ato de lutar, mas num período de tempo em que a vontade de disputar pela batalha é suficientemente conhecida” (HOBBES apud HOBSBAWM, 2000, P.224).

As superpotências, Estados Unidos e União Soviética, dividiam o mundo em regiões de sua influência. Consolidava-se, portanto, a bipolarização – cada superpotência buscava o fortalecimento de sua hegemonia em determinada área do mundo.

O armamentismo era o tom destes anos de Guerra Fria. O historiador Eric Hobsbawm, de forma clara, expressa o sentimento vivido na época:

Gerações inteiras se criaram à sombra de batalhas nucleares globais que, acreditava-se firmemente, podiam estourar a qualquer momento, e devastar a humanidade. Na verdade, mesmo os que não acreditavam que qualquer um dos lados pretendia atacar o outro, achavam difícil não ser pessimistas, pois a Lei de Murphy é uma das mais poderosas generalizações sobre as questões humanas (Se algo pode dar errado, mais cedo ou mais tarde vai dar). Não aconteceu mas por cerca de quarenta anos pareceu uma possibilidade diária (HOBSBAWM, 2000, p.224).

Neste mundo dividido, insere-se a América Latina sofrendo a influência, principalmente dos Estados Unidos, que já naqueles anos declaravam-se senhores das Américas, como afirma Basbaum (1986, p.101): “Este país detinha um passado marcado pela intervenção política nos países Latino-Americanos por aproximadamente 150 anos”. Neste sentido, a pressão norte-americana para o que o Brasil se mantivesse alinhado à sua política utiliza todo tipo de armas. Uma delas era a Aliança Para o Progresso, com o objetivo de “comprar as mentes e os corações de toda uma nação”. O Programa Aliança Para o Progresso consistia numa cooperação econômica.

No caso brasileiro, estabeleceram-se convênios com governos estaduais simpatizantes ou defensores dos interesses americanos. A titulo de exemplo, pode-se citar o governador do Rio Grande do Norte, Aluizio Alves, que firmou acordo com os americanos, sendo um dos primeiros governadores a apoiar o golpe militar.

A revolução cubana também foi outro fator que deixou em alerta os adeptos da política americana, pois como afirmou o professor José Germano, em “Estado militar e educação no Brasil”:

Na verdade, a experiência cubana fascinou os oprimidos de vários países e os Estado Unidos empenharam-se em evitar o surgimento de algo semelhante em outro ponto das Américas. Os exércitos continentais foram conclamados a travarem uma prolongada luta anti-subversiva e, em alguns casos, ocorreu uma intervenção inequívoca dos Estados Unidos em favor das forças antidemocráticas e golpistas, como se verificou no Brasil, em São Domingos e no Chile. (GERMANO, 1993,p.50)

A ideia era preservar o continente americano dos princípios socialistas . A civilização ocidental cristã não poderia se render ao comunismo . No Brasil, este era o pensamento dos conservadores da época, como bem demonstram as ideias do arcebispo de Diamantina/MG, D. Geraldo de Proença Sigaud, ao afirmar em 1962 que “o comunismo é uma seita internacional que visa instaurar o reino de Satanás neste mundo, destruindo a sociedade humana baseada na Lei de Deus e no Evangelho (SIGAUD apud GERMANO, 1993, p. 51).

O clima do período definia-se assim: de um lado encontravam-se os defensores da família e da propriedade privada, do outro estavam aqueles que defendiam uma sociedade socialista e sua economia planificada. Nesta conjuntura, a América Latina vivia em efervescência. A política de coexistência pacifica  entre comunistas e capitalistas , patrocinada por Moscou, era alvo de crítica da esquerda latino-americana. Essas críticas inspiravam-se no exemplo de Fidel e nas ideias de Debray. Como observa Hobsbawm (2000, p.428):

O exemplo de Fidel inspirou os intelectuais militantes em toda a América Latina. Cuba passou a estimular a insurreição continental, exortada por Che Guevara, o defensor da revolução latino-americana e da criação de “dois, três, muitos Vietnã. Uma ideologia adequada foi fornecida por um brilhante jovem esquerdista francês, que sistematizou a ideia de que num continente maduro para a revolução, só se precisavam importar pequenos grupos de militantes armados para as montanhas adequadas e formar ‘focos’ para a luta de libertação em massa.

Apesar de os acontecimentos da ilha de Cuba exercerem ampla influência na América Latina, existia uma enorme distância entre lutar por melhores condições de vida e defender a transformação do modelo econômico. As classes dominantes, de longa tradição na defesa de seus interesses e das multinacionais, com medo de perder o controle dos movimentos populares, utilizaram a propaganda da Guerra Fria para justificar qualquer meio empregado na conservação do poder em suas mãos. Edgar Luiz de Barros, em A Guerra Fria, esclarece esta relação entre a burguesia latino-americana e o mundo da Guerra Fria:

O ideário de luta anticomunista serviu como uma luva para que as classes dominantes latino-americanas justificassem sua presença no poder. O que era – e é – fruto da miserável situação interna e da exploração externa passou a ser considerado como resultado da ‘conspiração comunista internacional’. O descontentamento e o movimento popular foram intensamente reprimidos por governos que se justificavam internacionalmente, erguendo esfarrapadas bandeiras da Guerra Fria  (BARROS,1990,  p.68).

Deste modo, a repressão política patrocinada pelos donos do poder tinha como justificativa o mito constituído a partir do ideário da Guerra Fria de que a sociedade cristã ocidental estava em perigo diante da expansão comunista. Na verdade a luta por pão, terra e paz na América Latina era reprimida com uma brutalidade desumana.

A América Latina na década de 1960 é acompanhada de perto pelos Estados Unidos que, quando não encontram uma elite disposta a assumir e defender a política da Casa Branca, intervêm com seus Marines em qualquer parte do continente. De forma direta ou indireta, a presença norte-americana faz parte da história do Cone-sul. Para concluir estas considerações sobre a contextualização do tema no âmbito internacional, chamamos a atenção de que é bem ilustrativa a ação norte-americana, no Brasil, Lincoln Gordon, em 1964, confirma a participação de “Washington” no golpe militar-civil:

Obviamente não podia imaginar que aquilo fosse acabar em regime de exceção prolongado. Se alguém me sugerisse naquele dia que o governo militar iria durar 21 anos, eu diria que o sujeito era louco. A famosa operação Brother Sam , que se atribui à CIA, foi na verdade uma operação da marinha de guerra orquestrada por mim (GORDON apud COUTO, 1999, p.57).

 

REFERÊNCIAS

BARROS, Edgar Luiz de.  A guerra fria. Campinas: UNICAMP: Atual, 1990.

BASBAUM, Leôncio. História sincera da república. São Paulo: Alfa Omega, 1986. v. 4

COUTO, Ronaldo Costa.  História indiscreta da ditadura e da abertura: Brasil (1964-1985). Rio de Janeiro: Record, 1999.

GERMANO, José Willington. Estado militar e educação no Brasil: 1964-1985. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993.

HOBSBAWM, Eric. A era dos extremos: o breve século XX (1914-1991). São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

SADER, Emir. A transição no Brasil: da ditadura à democracia? São Paulo: Atual, 1991.