Opção individualista adotada pela ditadura chilena é cogitada para substituir o conceito solidário do Brasil. Professor teme que 2019 marque o fim do “breve ciclo da cidadania” no país
“Previdência não existe sem solidariedade”, disse José Ricardo Sasseron quase ao final de seminário realizado nesta terça-feira (4), em São Paulo, que discutia o destino da Previdência e os rumos do país a partir de 2019. Diretor da Associação Nacional dos Participantes de Fundos de Pensão(Anapar), Sasseron participou do debate sobre os modelos previdenciários brasileiro e chileno.
Uma das várias especulações sobre o futuro governo trata da adaptação, aqui, do sistema implementado no Chile ainda sob a ditadura Pinochet. Baseado em capitalização, o modelo consistiu, no início dos anos 1980, na transferência de todas as contribuições previdenciárias de trabalhadores para Administradoras de Fundos de Pensão (AFP) – instituições privadas, a maioria ligadas a grandes bancos e sem participação dos contribuintes na gestão.
O modelo é alvo de críticas e protestos, por excluir grande parte da população e desobrigar as empresas de contribuírem. E está sendo revisto pelo país por não conseguir cumprir a finalidade de assegurar aposentadorias aos trabalhadores.
Sasseron conta que participou de atividade, no país vizinho, do movimento No Más AFP, por mudanças na previdência e restabelecimento do sistema público. “O que me chamou muito a atenção é que a grande maioria era de jovens, preocupados com seu futuro. É um tema que mobiliza e traz preocupação para todos nós”, afirmou.
O professor Eduardo Fagnani, do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), observa que ainda não há clareza sobre o que fará o governo Bolsonaro – se um aprofundamento da reforma tentada por Temer ou a criação de bases para adoção do modelo chileno. Seja qual for a opção, ele receia que 2019 marque o fim do “breve ciclo de cidadania no Brasil”, com o desmonte de “um sistema de proteção social extraordinário”.
Para Fagnani, já está em curso um “desmonte” do Estado de bem-estar social surgido a partir da Constituição de 1988. Sinais disso, aponta, são a Emenda Constitucional 95, de teto dos gastos, a ampliação da Desvinculação das Receitas da União (DRU) e as “reformas” trabalhista (já implementada), previdenciária e tributária (pelo menos como vem sendo traçada).
Modelo chileno criou monstro
“A Constituição é um marco no processo civilizatório brasileiro”, diz Fagnani, para constatar, com tristeza, que o período de 30 anos pós-Carta, com ampliação de direitos sociais, “são um ponto fora da curva do capitalismo brasileiro, que é tosco, arcaico, não admite sequer princípios básicos de social-democracia”. Estas três décadas corresponderam ao único período da história brasileira com, ao menos teoricamente, efetivos direitos civis, sociais e políticos. Para ele, a Constituição de 1988 foi feita “na contramão do mundo”. O que estava na “moda”, acrescenta, era justamente o Chile com seu modelo econômico trazido pelos chamados Chicago boys, economistas neoliberais norte-americanos. “Agora, temos os Chicago velhos”, ironiza.
“O modelo chileno é um seguro social, só tem direito quem paga. E a seguridade social é um pacto com a sociedade”, compara o professor da Unicamp, que falou logo depois do consultor internacional Andras Ufhoff, assessor regional da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
“No Chile, estamos com medo, porque temos um monstro, que é real. Esse monstro consiste em termos posto o mercado para cuidar dos direitos sociais”, afirmou Ufhoff sobre o sistema previdenciário chileno. Medo era um dos motes do seminário, aberto pela professora e psicóloga Ana Bock. O evento foi organizado pelo escritório do advogado Ericsson Crivelli.
“Temos de alterar a Constituição, o que é difícil de conseguir”, acrescentou o assessor da OIT, para quem o modelo, criado em 1981, serviu de poupança para grupos financeiros internacionais. “É um sistema que absolutamente não funcionou.” Segundo ele, não há seguridade social no Chile, mas um mercado em que o trabalhador não contribui para uma aposentadoria, mas uma poupança. Os empregadores não participam. “Não há proteção social. O que acontece com quem não tem capacidade de poupança? Nesse modelo não há nenhum direito. A lógica desse sistema é individual.”
Entre outros resultados, segundo ele, 89% dos aposentados têm rendimento abaixo do salário mínimo, equivalente a US$ 420. Idosos passaram a viver com 20%, 30% do que recebiam. Os movimentos contra o modelo e pela volta do sistema público acontecem, mas enfrentam certo desânimo da população (“As pessoas estão cansadas de sair às ruas, de reclamar, sem que alguma coisa aconteça”) e esbarram também em forte resistência empresarial.
Para Fagnani, a partir de 2016, com o impeachment, o Brasil passou a viver uma “radicalização do projeto ultraliberal, que certamente terá continuidade no ano que vem”. Ele destaca o impacto da Previdência na redução da pobreza e da desigualdade no país. “Oitenta por cento dos idosos têm ao menos a Previdência como fonte de renda.”
Defensores da reforma desprezam dados da realidade brasileira, diz o professor, citando estudo do Dieese sobre a rotatividade: ainda antes da “reforma” trabalhista, o trabalhador contribuía apenas nove a cada 12 meses. Ele observa ainda que a sociedade é extremamente desigual e heterogênea. Apenas na cidade de São Paulo, lembra Fagnani, citando dados da Rede Nossa São Paulo, a expectativa de vida em Pinheiros, bairro nobre da zona oeste, é de 79 anos, enquanto em Cidade Tiradentes, no extremo leste, cai para 53 anos.
Terror e mitos
Para forçar mudanças na previdência, apela-se para o “terror” demográfico e econômico. “O governo diz que vai ter um déficit, mas não tem um modelo atuarial. Tudo que se fala sobre catástrofe em 2060 é chute, não tem base científica”, contesta o economista, para quem há um debate “baseado em mitos”, agora chamados de fake news.
Um dos mitos é o de que há aposentadoria “precoce” no Brasil. Segundo ele, o trabalhador urbano se aposenta em média com 63 anos e o rural, com 58. Entre outras mudanças, o governo queria adotar uma idade mínima única de 65 anos, além de esticar o tempo de contribuição. “Esse cálculo desconsidera a realidade social do Brasil”, afirma Fagnani. Para ele, a extinção do direito de proteção à velhice afronta a Declaração Universal dos Direitos do Homem.
Ainda na mudança tentada sem sucesso por Temer, dizia-se que haveria redução de custos de R$ 500 bilhões em 10 anos. Mas Fagnani lembra que esse valor é superado de longe por isenções, sonegação e pagamento de juros. “O sonegador no Brasil é beneficiado com financiamento.”
Ele avalia que mesmo para o próximo governo não será fácil aprovar uma reforma, seja qual for. “Agora, tem de ter mobilização (para resistir). E subsídio técnico”, aponta.
Para Ana Bock, que foi candidata a vice-governadora paulista na chapa de Luiz Marinho (PT), o cenário brasileiro exigirá cautela. Ela considera o presidente eleito, Jair Bolsonaro, um “avatar”, personagem criado para atender a interesses econômicos das elites, parte de um processo que tenta impor um projeto político em prejuízo de um projeto civilizatório. “Ainda temos um país que classifica muito, (que diz) quem pode ou não entrar na festa.”
// Fonte: Rede Brasil Atual